Fernando Alcoforado*
As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, é uma das grandes obras clássicas da literatura latino-americana. É uma leitura necessária para aqueles que precisam entender a História da América Latina. As veias abertas da América Latina foi publicado pela primeira vez em 1970. Galeano faz um balanço dos 500 anos da história da América Latina retratando sua economia agrícola e mineradora dominada pelo mercado internacional com o objetivo de gerar lucros para a potência dominadora, a pobreza social como resultado de um sistema econômico excludente que privilegia uma minoria, a opressão de governos autoritários contra as maiorias que produziram genocídios e o caos social, a exploração do trabalho e as péssimas condições de sobrevivência para a grande maioria de sua população. Na obra de Galeano, fica demonstrado que a América Latina foi e é peça importante no enriquecimento de poucas nações, e o preço que paga por isso é o seu subdesenvolvimento crônico, suas eternas crises sociais e seu status de colônia. A riqueza das potências é a pobreza da América Latina, diz Galeano (GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina, Montevidéu: L&PM, 2010).
O livro de Galeano mostra como os espanhóis e portugueses chegaram à América Latina no século XV e se aproveitaram das riquezas que o continente possuía. Os espanhóis, estabelecidos desde o planalto mexicano até a Cordilheira dos Andes, encontraram ouro e prata. Os portugueses, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, construíram um império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam o ouro. Embora em áreas diferentes, a tônica da exploração foi a mesma: trabalho forçado, agressão física, enriquecimento, opressão colonial. Os espanhóis utilizaram dois exércitos de mão-de-obra disponíveis: os índios astecas no México e os incas no Peru. Estas civilizações retratam, para o autor, o caráter do domínio colonial: socialmente e militarmente evoluídas, foram destruídas e levadas ao trabalho forçado nas minas. Já os portugueses, depois de tentarem a exploração dos índios na produção de cana de açúcar e não obterem sucesso, se transformaram no maior traficante de negros mundial. Vindos da África, os negros foram levados à força para, em terras brasileiras, se tornarem escravos e motores da produção açucareira.
Ao descrever a evolução desses centros produtores de riqueza colonial na América Latina, Galeano mostrou que ela não não era usufruida nem pela Espanha e nem por Portugal porque se destinava a pagar as dívidas que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico no continente latino-americano: a Inglaterra. Galeano traz a exploração colonial para o momento atual e fala da decadência da América Latina. As guerras de libertação dos povos latino-americanos contra o império espanhol duraram mais de duas décadas – de 1810 a 1830 – com levantes populares e uma guerra de libertação na qual foram criados verdadeiros exércitos populares. Uma luta que abrangeu toda a América Latina dominada pela Espanha. Os principais protagonistas foram o exército de Simón Bolívar, que libertou Venezuela, Colômbia e Equador, e o de San Martín, que consolidou a independência da Argentina e libertou Chile e Peru. Logo, Bolívar terminou libertando a Bolívia, com o que consolidou a total derrota do imperialismo espanhol. Estes exércitos libertadores se encontraram na cidade equatoriana de Guayaquil. Neste momento, Bolívar defendeu a ideia de uma Grande América Latina Unida, mas não houve acordo, fato este que levou à fragmentação da América espanhola em vários países.
Por sua vez, a independência do Brasil em relação a Portugal seguiu um curso diferente. Durante o período colonial, houve várias revoltas no Brasil visando sua separação de Portugal, como a Inconfidência Mineira de 1789 e a Conjuração Baiana de 1798. Com o retorno de D. João VI a Portugal em 1821 seu filho, D. Pedro I, o substitui como Imperador do Brasil e decide, no dia 7 de setembro de 1822, proclamar a Independência do Brasil em relação Portugal com o objetivo principal de manter a unidade territorial do Brasil e evitar o fracionamento em vários países como o que ocorreu nas colônias espanholas. D. Pedro I manteve a unidade do território do Brasil, agradando aos interesses dos grupos que dominavam a colônia. O fato deplorável relativo à Independência do Brasil reside no fato de que ela não levou à abolição da escravidão que beneficiaria o principal segmento social que habitava o país, os africanos escravizados.
O principal fato deplorável da Independência do Brasil é o de que ela não resultou da luta do povo brasileiro, mas sim da vontade do Imperador D. Pedro I. A Independência do Brasil diferiu da experiência dos demais países das Américas porque não apresentou as características de um típico processo revolucionário nacional-libertador. O nativismo revolucionário, sob a influência dos ideais do liberalismo e das grandes revoluções de fins do século XVIII cedeu terreno no Brasil à lógica de mudar conservando os privilégios que prevalecem até hoje. A Independência do Brasil foi, portanto, uma “independência sem revolução” porque não houve mudanças na base econômica da nação. O Estado que nasce da Independência do Brasil mantém o execrável latifúndio e intensifica a não menos execrável escravidão fazendo desta o suporte da restauração que realiza quanto às estruturas econômicas herdadas da Colônia.
É preciso não esquecer que no Haiti, país mais pobre da América Latina, ocorreu a primeira revolução negra em 1791, que levou à sua independência da França na época da Revolução Francesa. Esta foi uma verdadeira revolução popular que logo foi esmagada. Com a conquista da independência em relação à Espanha e Portugal, os países latino-americanos não realizaram uma integração regional nem resolveram todas as tarefas democráticas. Não foi resolvida a questão da reforma agrária à exceção de alguns países e regiões como o México com a revolução ocorrida no começo do século XX, a Bolívia com a revolução dos anos 1950 e o Peru com a reforma agrária da década de 1960. Mesmo com a independência em relação à Espanha e Portugal, toda a história da América Latina tem se caracterizado pela luta contra o imperialismo porque as tarefas sociais e de libertação nacional não foram resolvidas. A luta contra o imperialismo apresentou-se primeiro contra os colonizadores espanhóis, portugueses e franceses. Na sequência, contra o imperialismo da Inglaterra e dos Estados Unidos. O único país que alcançou uma definitiva ruptura com o imperialismo norte-americano e realizou a reforma agrária foi Cuba em 1959.
Após a 2ª Guerra Mundial, alguns países da América Latina tentaram se libertar do jugo do imperialismo, sobretudo dos Estados Unidos. Na tentativa de manter sua dominação o governo norte-americano patrocinou 49 golpes de estado de 1945 até o momento que culminaram na derrubada de governos em vários países da América Latina que se opunham a seus interesses. A Bolívia é o país com a ocorrência de maior número de golpes de estado e revoltas na América Latina. Foi neste país onde se juntaram, de forma mais concentrada, as grandes contradições políticas, econômicas e sociais do continente latino-americano, saqueado primeiro pelos imperialismos espanhol, português e francês e, em seguida, pelos imperialismos britânico e norte-americano. A única e grande revolução de libertação nacional ocorrida em nosso continente foi a cubana em 1959. Diferentemente da Bolívia, a revolução cubana triunfou, derrotou o imperialismo norte-americano e expropriou os principais meios de produção em mãos privadas. Cuba era uma pequena republiqueta dos Estados Unidos, famosa por seus cassinos e lugar de turismo da burguesia norte-americana, com os engenhos no campo como a principal indústria nas mãos do imperialismo. O movimento 26 de Julho comandado por Fidel Castro foi um movimento da classe média democrática das cidades e de setores burgueses que derrubou o ditador Fulgêncio Batista, com vinculação com a burguesia dos Estados Unidos.
Os movimentos nacionalistas, a partir da década de 1960, foram cada vez mais domesticados e submetidos por golpes de estado ou cooptação pelo imperialismo hegemônico, o norte-americano. Isto se deu com os grandes movimentos políticos que haviam surgido como o trabalhismo no Brasil, o peronismo na Argentina, o PRI no México, o PARA no Peru. Muito contribuiu para isto o fim do socialismo, como ideologia, que foi derrotado no mundo após o fim da União Soviética e do sistema socialista do leste europeu em 1989, bem como o processo de globalização a partir de 1990 que fez com que os países da América Latina se subordinassem cada vez mais aos ditames do capitalismo internacional. Um fato é evidente: a transformação dos países da América Latina para a condição de independente e desenvolvido é bastante difícil de realizar devido à ação nefasta imposta pelas grandes potências capitalistas sobre esses países, especialmente os Estados Unidos. A tese que vigorava após a Segunda Guerra Mundial de que seria possível a todas as nações periféricas e semiperiféricas do capitalismo alcançarem o estágio de elevado nível de desenvolvimento desfrutado pelos países capitalistas centrais, sobretudo pelos Estados Unidos não se realizou.
A partir da segunda metade do século XX, houve várias tentativas de promoção do desenvolvimento econômico e social em vários os países do mundo que fracassaram sejam aqueles nos marcos do capitalismo com o nacional desenvolvimentismo implementado, por exemplo, no Brasil, pelos governos Getúlio Vargas e aquelas com a implantação do socialismo no leste europeu e no sudeste asiático. A partir da década de 1990, os países da América Latina aprofundaram ainda mais sua dependência em relação às grandes potências capitalistas e ao capital internacional com a imposição do modelo econômico neoliberal que faz com que estejam ameaçados de sofrerem as consequências das crises da economia global que tendem a se agravar com a evolução do tempo. As veias da América Latina ainda estão abertas com os países dela integrantes apresentando como resultados da espoliação econômica internacional crescimento econômico negativo, desequilíbrios externos, desindustrialização, desnacionalização de empresas estatais, estagnação da produtividade, falência generalizada de empresas, dívida interna elevada, concentração elevada da riqueza e da renda, desemprego em massa e pobreza extrema.
Pode-se afirmar que países capitalistas periféricos e semiperiféricos como os da América Latina só promoverão seu desenvolvimento se lutarem contra sua dependência externa (econômica e tecnológica) em relação aos países capitalistas centrais. Realizar a ruptura econômica e tecnológica em relação aos países capitalistas centrais não significa o desenvolvimento autárquico, mas promover prioritariamente o desenvolvimento interno do país com abertura econômica seletiva em relação ao exterior como fizeram o Japão, a Coreia do Sul e a China nas décadas de 1970, 1980 e 1990, respectivamente. A ruptura da dependência significa ativa participação do Estado no planejamento da economia nacional visando o desenvolvimento das forças produtivas do país e do mercado interno, a produção interna em substituição de produtos importados e para exportação, o desenvolvimento de tecnologia própria e a formação de poupança interna na quantidade necessária para não depender de capitais externos para investimento. Esta estratégia propiciaria a expansão da economia nacional com a geração de negócios e de empregos suficientes para atender as necessidades do país, além de atenuar o impacto das crises que ocorram na economia mundial.
Lamentavelmente, o Brasil adota com o governo Bolsonaro um posicionamento subalterno em relação aos Estados Unidos e ao capital internacional aprofundando, ainda mais, a política econômica neoliberal, antissocial e antinacional, adotada pelos governos brasileiros desde 1990 e decidiu pela entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos, pela desnacionalização da Embraer com sua venda à Boeing, pelos leilões de venda da cessão onerosa da Petrobras relativo ao Presal que beneficia o capital estrangeiro e pela privatização dos setores de refino, distribuição e transporte de óleo e gás da Petrobras demonstrando o caráter entreguista de seu governo que está a serviço do deus Mercado, de Wall Street e do Consenso de Washington. Além disso, não adota medidas concretas que contribuam para a superação dos graves problemas econômicos e sociais do País que se encontra estagnado economicamente há 5 anos e com 41 milhões de pessoas desempregadas e subempregadas. 2019 foi um ano trágico para o Brasil com o governo Bolsonaro que dá continuidade à perpetuação da deplorável trajetória subalterna do País em relação às grandes potências ao longo de sua história. As veias da América Latina ainda estão abertas, também no Brasil.
Para libertar os países da América Latina da tirania secular imposta pelas grandes potências imperialistas e pelo capitalismo neoliberal globalizado não há outro caminho senão o da luta no parlamento e na sociedade civil de todos os patriotas no interior de cada país contra as forças políticas que dão sustentação a esta dominação e de articulação continental de todas as forças que lutam pela conquista da independência de cada país e da região na luta contra o inimigo comum. Se nenhum de nós latino americanos não estiver disposto a morrer pela independência, todos morreremos sob a tirania.
* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).