A CRISE DO CORONAVIRUS REVELA A IMPORTÂNCIA DA AUTOSSUFICIÊNCIA NACIONAL

Fernando Alcoforado*

A crise do coronavirus encontra o Brasil devastado como um país ameaçado de ter colapsado seu sistema de saúde e incapaz de produzir insumos para fabricação de fármacos, respiradores e, até mesmo, máscaras para proteção de profissionais da saúde e da população. Até mesmo os Estados Unidos são, hoje, um bom exemplo da escassez que muitos países enfrentam porque transferiu muitas de suas indústrias para a China. Em Nova Iorque, onde a situação da epidemia é dramática, falta desde equipamentos de proteção individual a respiradores. Hoje, como em boa parte do mundo, muitos governos lamentam a falta de projeto de desenvolvimento que torne autossuficiente o país porque deixaram o mercado livre para tomar decisões como fechar fábricas em território nacional e levá-las para locais onde as margens de lucro seriam maiores, como é o caso da China, Índia e países do Sudeste Asiático. Esta postura foi ditada pela visão que passou a prevalecer no mundo a partir de 1990 que foi a da globalização e da abertura dos mercados de acordo como a ideologia neoliberal.

A decisão dos governos de não produzir localmente transferindo-a para locais onde as margens de lucro seriam maiores foi determinante da decisão dos governos de não investirem na produção de materiais e equipamentos médicos em seus países transferindo-a para os países de menor custo de produção como é o caso da China. O resultado é catastrófico porque há falta de insumos para fabricação de fármacos, respiradores e, até mesmo, máscaras para proteção de profissionais da saúde e da população. No Brasil, a situação é lastimável porque a indústria, a ciência e a tecnologia nacional foram sucateadas desde 1990 com a adoção pelos diversos governos de políticas neoliberais que contribuíram para aumentar a dependência tecnológica e industrial em relação ao exterior. A retração atual da indústria revela incapacidade de reação do setor e a perspectiva de reversão do quadro é muito difícil na conjuntura atual de recessão econômica agravada pela crise do coronavirus. Esta retração da indústria brasileira vem desde a década de 1980, quando a participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) era de 33% e, em 2019, não passou de 11,3%. É o patamar mais baixo em 80 anos. Estagnada, a indústria tem a menor fatia do PIB desde o final da década de 1940.

No Brasil, a ação governamental tem sido bastante débil no desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação que resulta da inexistência de uma política industrial desde 1980 que aponte soluções eficazes visando a redução permanente dos custos de produção da indústria no Brasil frente aos países asiáticos, especialmente a China, que só pode ocorrer de quatro formas: (1) redução da queda da carga tributária e a melhoria da infraestrutura logística do Brasil; (2) aumento de produtividade da indústria com a elevação de seus níveis de eficiência e eficácia e fortalecimento de suas cadeias produtivas; (3) desvalorização do real com restrição à entrada de dólares ou a adoção do câmbio fixo; e (4) desoneração seletiva e permanente da indústria com a redução da carga tributária nela incidente

Estas soluções deveriam ser complementadas com a adoção de medidas voltadas para: 1) a superação dos gigantescos problemas da educação do Brasil em todos os níveis tendo como objetivo o aumento da “massa crítica” do País; 2) o desenvolvimento dos recursos de conhecimento adotando programas para implantação de centros de P&D, fortalecimento das universidades, aquisição de tecnologia e atração de cérebros do exterior; 3) a adequada dotação de recursos de infraestrutura estabelecendo programas eficazes de eliminação dos gargalos logísticos existentes; 4) o incentivo às ligações entre as cadeias produtivas das empresas e seus fornecedores com a eliminação de lacunas existentes; e, 5) o combate à competição predatória dos produtos importados com a restrição ou limitação de sua entrada no mercado nacional.  Nada disto está sendo adotado, fato este que esta contribuindo para o Brasil estar inteiramente à mercê do Coronavirus porquanto a indústria e o sistema de ciência e tecnologia sucateados não estão em condições de oferecer pronta resposta aos problemas atuais.

Os Estados Unidos, por exemplo, têm 1 milhão de cientistas trabalhando em pesquisa e desenvolvimento dos quais 79% estão nas empresas, 8% no governo e 13% em instituições de ensino superior. Já no Brasil, que possui 123 mil cientistas, 72% dos pesquisadores estão nas universidades, 23% nas empresas e 5% no governo. A Coréia do Sul, que investiu pesadamente em pesquisa aplicada nos últimos 25 anos, tem 100 mil cientistas e engenheiros trabalhando nas empresas. Estes números mostram que, ao contrário dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, a contribuição das empresas em P&D no Brasil é muito pequena. Este fato explica porque o Brasil continua sendo um dos países menos inovadores do mundo. Essa deficiência causa profundos danos à capacidade de competir da empresa brasileira, uma vez que a inovação tecnológica é criada muito mais na empresa do que na universidade, cuja missão específica é educar profissionais e gerar conhecimentos fundamentais.

A ausência dessas medidas contribuiu para ocorrer, de 1990 até o momento, a falência de amplos setores industriais, a desindustrialização e desnacionalização da economia brasileira. A desnacionalização da economia brasileira é evidenciada quando se observa que, das 50 maiores empresas brasileiras, 26 são estrangeiras, segundo o Censo do Capital estrangeiro no Brasil. Mais da metade das empresas brasileiras de setores de ponta (automobilístico, aeronáutica, eletroeletrônico, informática, farmacêutico, telecomunicações, agronegócio e minérios) estão nas mãos do capital estrangeiro. O capital estrangeiro está presente em 17.605 empresas brasileiras que respondem por 63% do Produto Interno Bruto (PIB), e tem o controle de 36% do setor bancário e possui 25% das ações do Bradesco e 20% das ações do Banco do Brasil.  A subordinação do Brasil ao capital internacional no setor industrial e em outros setores da economia brasileira explica porque ele está entre os últimos países colocados em termos de inovação e porque as empresas aqui instaladas pouco contribuem para o desenvolvimento da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

Pelo exposto, pode-se concluir que os países do mundo devem perseguir sua autossuficiência abandonando a política atual, neoliberal e de globalização econômica e financeira, responsável pelas fragilidades econômicas globais e pela dependência em relação ao exterior, com sua substituição pelo modelo de desenvolvimento que priorize a produção no interior do país dos produtos e serviços essenciais para seu progresso econômico e social. O Brasil e todos os países atrasados do mundo só promoverão seu desenvolvimento se levarem ao fim sua dependência externa (econômica e tecnológica) em relação aos países capitalistas centrais.  Realizar a ruptura econômica e tecnológica em relação aos países capitalistas centrais não significa o desenvolvimento autárquico, mas promover prioritariamente o desenvolvimento interno do país com abertura econômica seletiva em relação ao exterior como fizeram o Japão, a Coreia do Sul e a China nas décadas de 1970, 1980 e 1990, respectivamente. A ruptura da dependência significa ativa participação do Estado no planejamento da economia nacional visando o desenvolvimento das forças produtivas do país e do mercado interno, a produção interna em substituição de produtos importados e, também, para exportação, o desenvolvimento de tecnologia própria e a formação de poupança interna na quantidade necessária para não depender de capitais externos para investimento. Esta estratégia propiciaria a expansão da economia nacional com a geração de negócios e de empregos suficientes para atender as necessidades do país, além de atenuar o impacto das crises que ocorram na economia mundial em consequência da guerra comercial desencadeada pelos Estados Unidos contra a China, da possível explosão da bolha da dívida mundial e de problemas como a pandemia do coronavirus.

Só assim será possível fazer o Brasil crescer economicamente a taxas elevadas e eliminar a subutilização da força de trabalho que atinge o nível recorde de 27,7 milhões de trabalhadores, segundo a pesquisa PNAD do IBGE. No artigo de Nicola Pamplona publicado na Folha de S. Paulo em 17/5/2018, sob o título Falta trabalho para 27,7 milhões de pessoas, diz IBGE, disponível no website <https://www1-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/www1.folha.uol.com.br/amp/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml>, consta a informação de que a taxa de subutilização da força de trabalho, que inclui os desempregados, pessoas que gostariam de trabalhar mais e aqueles que desistiram de buscar emprego, bateu recorde no primeiro trimestre, chegando a 24,7%. Ao todo, são 27,7 milhões de pessoas nessas condições, o maior contingente desde o início da série histórica, em 2012. Destes, 13,7 milhões procuraram emprego, mas, não encontraram. O restante são subocupados por insuficiência de horas trabalhadas, pessoas que gostariam de trabalhar, mas, não procuraram emprego ou desistiram de procurar emprego. Esta situação se agravou ainda mais com a crise do coronavirus.

* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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Author: falcoforado

FERNANDO ANTONIO GONÇALVES ALCOFORADO, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).

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