COMO NASCEU O ESTADO POLICIAL NA ALEMANHA NAZISTA E O BRASIL CONTEMPORÂNEO

Fernando Alcoforado*

Este artigo tem por objetivo mostrar como surgiu o estado policial na Alemanha durante a República de Weimar quando um ramo da polícia da Prússia (região da Alemanha que se estende desde a baía de Gdańsk na Polônia, o final da Curlândia na costa sudeste do mar Báltico, na Letônia, até a Masúria, no interior do que é atualmente território polonês), se transformou em uma polícia política, a temida Gestapo, durante o nazismo, bem como o cenário político, econômico e social que levou ao seu surgimento. A Gestapo é uma abreviatura alemã que significava polícia secreta do Estado, organização que investigava, torturava e prendia opositores ao regime nazista (Reich) da Alemanha, entre 1933 e 1945. A Gestapo foi, portanto, a expressão do estado policial em que se transformou a Alemanha durante o nazismo. Este artigo faz, também, uma análise comparativa entre a Alemanha da República de Weimar e o Brasil contemporâneo com os riscos do fim da democracia e sua transformação em um estado policial.

A Gestapo foi criada em 26 de abril de 1933, na Prússia, a partir da Polícia Secreta da Prússia. No início, era apenas um ramo da polícia prussiana. Quando foi criada pelo ministro do Interior da Prússia, Hermann Goring, a Gestapo foi responsável pela investigação, prisão e tortura dos opositores políticos da Alemanha nazista até o seu fim com a derrota na Segunda Guerra Mundial ocorrida em 1945. A atuação da Gestapo era baseada no Decreto para a Proteção do Povo e do Estado, assinado em 1933 pelo presidente alemão, Paul von Hindenburg, após um atentado incendiário contra o Parlamento alemão atribuído aos comunistas, mas realizado pelos nazistas. A Gestapo foi criada originalmente para servir de guarda pessoal dos líderes nazistas, sendo assim uma tropa de elite cujos membros trajavam camisas pretas.

Sob o pretexto de defender o país contra atos violentos (supostamente causados por comunistas), o Decreto para a Proteção do Povo e do Estado de 1933 restringia direitos civis, como a liberdade de expressão e a de imprensa. Assim, sob proteção legal, agentes secretos podiam agir como bem entendessem. Eles não precisavam de mandados judiciais para interrogar, aprisionar e até enviar supostos opositores políticos do governo para campos de concentração, sob controle de outra organização nazista, a SS (sigla alemã para “tropa de proteção”). Apenas depois, na sequência de um movimento político engendrado para destruir as tropas de assalto nazistas indisciplinadas conhecidas como SA é que a Gestapo seria oficialmente subordinada à SS, tropas nazistas lideradas por Heinrich Himmler.

SS foi um grupo fundado em 1925, com o objetivo de proteger Adolf Hitler e os dirigentes do Partido Nazista. Este exército nazista se originou a partir do grupo paramilitar SA, que agia de modo semi-independente desde 1923, com o intuito de proteger os membros do Partido. Os membros da SS eram constituídos pelos chamados “homens de elite”, indivíduos que se enquadravam nos padrões de “pureza” racial defendidos pela ideologia nazista. Esses soldados juravam lealdade total ao Terceiro Reich. O primeiro comandante da SS foi Rudolf Diels, que recrutou membros de departamentos policiais profissionais e fez com que ela funcionasse como uma Polícia Federal, semelhante ao FBI dos Estados Unidos.

Até então, a SS era composta por cerca de 300 soldados. Somente a partir de 1929, quando Heinrich Himmlerassume o comando, que este exército nazista começa a se tornar uma poderosa organização. A Gestapo foi dirigida por vários anos por Reinhard Heydrich. Respondendo apenas a Heinrich Himmler e ao próprio Führer Adolf Hitler, Heydrich liderou uma das organizações mais temidas da Alemanha nazista. Agora sem uniformes, a Gestapo contribuiu significativamente para destruir toda a oposição política alemã nos anos imediatos após a ascensão nazista, perseguindo e prendendo de forma sistemática sindicalistas e comunistas. O papel da Gestapo como polícia política só foi estabelecido quando Hermann Göring foi designado para suceder Diels como comandante em 1934.

A Gestapo tinha poucas dezenas de milhares de agentes espalhados por toda a Europa. O segredo de seu sucesso estava, de fato, no rigorosíssimo treinamento desenvolvido pelo próprio Heinrich Himmler, além das frequentes denúncias de alemães em relação a compatriotas que julgavam suspeitas e as saudáveis relações da Gestapo com outras organizações de segurança da Alemanha nazista. À medida que o poder totalitário do nazismo na Alemanha se cristalizava, a Gestapo deixou paulatinamente a perseguição dos dissidentes políticos e passou a focar na perseguição aos judeus. A organização desempenhou papel central na chamada Noite dos Cristais, quando após dois dias de grande violência contra a comunidade judaica cerca de 25.000 judeus foram deportados.

Em meio à guerra, seria o chefe da Gestapo, Reinhard Heydrich, que sistematizaria a chamada “solução final” para lidar com os judeus restantes em território alemão, àquela altura confinados em guetos. Pouco depois, porém, ele foi assassinado em um atentado que desencadeou uma onda brutal de violência da Gestapo na Tchecoslováquia, que dizimou toda a cidade de origem dos assassinos. Depois disso, a organização assumiria um caráter de “purificação”, ou seja, extermínio das populações julgadas indesejáveis pela ideologia nazista. Para tal, seriam criadas tropas específicas derivadas da Gestapo, os esquadrões da morte, que alcançavam números aterrorizantes de eficiência.

Um capítulo à parte deve ser reservado aos métodos de prisão, interrogatório e tortura da Gestapo. Todo preso pela polícia secreta nazista podia esperar as formas mais selvagens de suplícios, com o de arrancar-lhe qualquer informação ou delação que viesse a ser útil. Os métodos de interrogatório incluíam repetidos afogamentos de prisioneiros em uma banheira de água gelada; choques elétricos ligando os fios às mãos, pés, orelhas e genitália; esmagamento de testículos; levantamento do prisioneiro pelas mãos amarradas atrás das costas, causando a luxação do ombro (prática conhecida durante a Inquisição católica como o pêndulo); espancamentos com cassetetes de borracha ou chicotes e queimaduras com charutos ou ferro de soldar.

Tudo o que acaba de ser descrito ocorreu durante a República de Weimar que foi instituída em 1919 com o fim da monarquia após a 1ª Guerra Mundial. Com a Constituição de 1919, o Reich alemão ganhava a forma de república e se organizava como uma democracia parlamentar moderna. Não adiantou muito porque as contradições do período colocaram a Alemanha em uma espiral de crise econômica, social e política que acabou no nazismo. Weimar acabou se tornando uma grande exemplo do fracasso da democracia liberal parlamentar que nasceu com o impulso otimista de regeneração nacional e democrática que acabou nas trevas do nazismo. Quando hoje se fala na “síndrome de Weimar”, está se referindo às tensões que ameaçam pôr em perigo a estabilidade da democracia liberal com as tensões provocadas principalmente pela revitalização do populismo e pela guinada iliberal e autoritária como ocorre hoje no Brasil.

Será que situação atual do Brasil se parece com os turbulentos anos 1930 na Alemanha durante a República de Weimar? Há semelhanças e diferenças. As semelhanças são de natureza econômica com a estagnação da economia, de natureza social com a falta de cobertura social adequada aos mais necessitados e de natureza política com o empenho da extrema direita no sentido de destruir as instituições democráticas.  As diferenças reside no fato de que, diferentemente da Alemanha, as forças políticas de esquerda ou extrema esquerda no Brasil não se digladiam com as de extrema direita como ocorria na Alemanha e de que não há problemas psicossociais no Brasil como a humilhação do sentimento nacional pelo tratado de Versalhes e as indenizações de guerra sofridos pela Alemanha. A República de Weimar chegou ao fim com a implantação do nazismo quando a Alemanha se transformou em estado policial. A República democrática instituída em 1988 no Brasil terá o mesmo fim da República de Weimar?

Um fato é evidente: existe uma relação linear entre crise econômica e social e colapso democrático. Não pode haver democracia sem liberalismo, nem sem proteção social. Uma democracia sem aspirações de justiça social como a da República de Weimar não poderia sobreviver. O mesmo pode se repetir no Brasil contemporâneo diante dos gigantescos problemas econômicos e sociais. A história nunca se repete seguindo o mesmo roteiro, mas também não precisa cair no fascismo ou no nazismo convencional para que ocorra a quebra da democracia. Este foi o cenário que levou à formação da Gestapo na Alemanha nazista que precisa ser evitado no Brasil.

Pelo exposto, a história tenebrosa da Gestapo na Alemanha nazista mostra os riscos de transformação da polícia secreta do Estado da Prússia em um instrumento dos interesses de quem exercia o poder, como Adolf Hitler em 1933. É preciso evitar a todo custo que o que ocorreu na Alemanha nazista se repita no Brasil com a transformação da Polícia federal em uma Gestapo. Este risco precisa ser evitado diante do interesse de Bolsonaro em controlar a Polícia Federal e de suas ameaças contra o estado democrático de direito.

REFERÊNCIA

HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Moraes, 1983.

MICHEL, Henri. “O Nacional-Socialismo”. In: Os Fascismos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.

RICHARD, Lionel. A República de Weimar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017),  Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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Author: falcoforado

FERNANDO ANTONIO GONÇALVES ALCOFORADO, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).

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