Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo fazer uma análise comparada entre a revolta de maio de 1968 na França com a revolta de maio de 2020 nos Estados Unidos. A injustiça social praticada pela ordem dominante capitalista existente na França em 1968 e a que existe nos Estados Unidos em 2020 foi o fator que contribuiu para a revolta popular em ambos os países que deverão se repetir em todo o mundo porque as condições econômicas e sociais das populações deverão se agravar ao longo do tempo com o desmoronamento do sistema capitalista mundializado.
O Maio de 1968 na França
O Maio de 1968 foi uma grande onda de protestos que teve início com manifestações estudantis para pedir reformas no setor educacional da França. Os universitários se uniram aos operários e promoveram a maior greve geral da Europa até então, com a participação de cerca de 10 milhões de pessoas. O começo de tudo foi uma série de conflitos entre estudantes e autoridades da Universidade de Paris, em Nanterre, cidade próxima à capital francesa. No dia 2 de maio de 1968, a administração da Universidade ameaçou expulsar vários estudantes acusados de liderar o movimento contra a instituição. As medidas provocaram a reação imediata dos alunos de uma das mais renomadas universidades do mundo, a Sorbonne, em Paris.
Os estudantes se reuniram no dia seguinte para protestar, saindo em passeatasob o comando do líder estudantil Daniel Cohn-Bendit. A polícia reprimiu os estudantes com violênciae durante vários dias as ruas de Paris viraram cenário de batalhas campais. A reação brutal do governo só ampliou a importância das manifestações. No auge do movimento, quase dois terços da força de trabalho do país cruzaram os braços. As pessoas aderiram à greve, até sua proclamação oficial em 13 de maio. Foi quando toda a França parou. Houve um conjunto de protestos, manifestações e conflitos em que os estudantes pediam reformas no setor educacional, as mulheres exigiam mais igualdade e os trabalhadores pediam salários maiores. A conquista da revolução sexual, o aumento dos direitos trabalhistas e o fim da guerra do Vietnã faziam parte do conjunto das reivindicações. O movimento cresceu tanto que desestabilizou o governo do então presidente da França, general Charles De Gaulle, que, enfraquecido politicamente, renunciou um ano depois.
O movimento estudantil, que, teve início na Universidade de Nanterre em 1968 se alastrou rapidamente por toda Paris, alcançando a Sorbonne, todo o Quartier Latin, e, em poucas semanas, as principais províncias francesas. Este movimento não se reduziu à agitação de estudantes universitários que se constituíram na força que anunciava a rebelião em curso. A efervescência estudantil era antes a manifestação mais evidente ou o barômetro sensível de um descontentamento geral e de uma crise maior que já se anunciava no seio da sociedade francesa. Não apenas a ordem econômica capitalista estava em jogo, mas a própria ordem social porque a população francesa estava insatisfeita com a falta de significado de uma sociedade capitalista burocratizada, onde a maioria dos cidadãos levava uma existência trivial, medíocre, repetitiva, repressiva e reprimida. Toda ordem social estava sendo questionada, o estilo de vida, o quotidiano estava sob suspeita. Uma árdua luta foi travada contra os patrões e o Estado. “Ni Dieu, Ni Mâitre!” (“Nem Deus, Nem Senhor!”), exclamavam os anarquistas, relembrando o lema de Auguste Blanqui, de finais do século XIX. “À Bas l’État Policier!” (“Abaixo o Estado Policial!”), gritavam outros rebeldes, selvagemente reprimidos pela força policial — a violência organizada e concentrada nas mãos do Estado, detentor do monopólio das armas.
No dia 25 de maio de 1968, dia seguinte da noite mais violenta de motins da primavera com 200 feridos, dois mortos e dez milhões de trabalhadores em greve foram realizadas negociações entre o governo, patronato, sindicato de trabalhadores e estudantes. Trinta horas mais tarde, o Primeiro Ministro Pompidou anunciou o resultado das negociações contemplando aumento de salários, redução do tempo de trabalho, avanços no direito sindical, redução dos encargos tributários sobre os salários, entre outras concessões. Os dirigentes dos trabalhadores da CGT anunciaram a vitória. Em todo o país, os acordos celebrados foram considerados, entretanto, atos de traição. De fato, os acordos celebrados não estavam à altura da gigantesca mobilização de maio de 1968. Falou-se, também, que uma situação pré-revolucionária foi abortada. Maio de 1968 representou, portanto, uma derrota das forças que desejavam realizar mudanças profundas na sociedade francesa.
O Maio de 2020 nos Estados Unidos
A revolta de 1968 aconteceu, também, nos Estados Unidos, quando Martin Luther King expandiu o escopo do movimento pelos direitos civis e engrossou fileiras contra a Guerra do Vietnã, que naquele momento matava mais de mil soldados americanos por mês. Em abril de 1968, o próprio Luther King foi assassinado com um tiro de fuzil no rosto. O assassinato foi o estopim para manifestações em mais de cem cidades norte-americanas. O movimento popular chegaria a seu auge em agosto daquele ano, com cenas de batalha campal entre manifestantes e a polícia em Chicago, que resultou em mais de 600 civis e 130 policiais feridos. Assim como agora, os protestos de 1968 foram motivados pela desigualdade racial, mas também pela injustiça econômica e contra a guerra do Vietnã. Em 1968, as pessoas sentiram que era hora de dar um basta, como vemos agora. O movimento era muito energizado por jovens, como agora. E, como em 1968, os protestos de 2020 vão aumentando de cidade em cidade e parece que não há fim.
Em 25 de maio de 2020, foi morto o negro americano George Floyd assassinado por um policial branco em Minneapolis que se ajoelhou sobre seu pescoço durante quase nove minutos até que ele fosse morto. Este evento serviu de ponto de partida para um grito de guerra em mais de 100 cidades americanas, não apenas contra o racismo, mas também, contra os males sociais sofridos pela grande maioria da população norte-americana, especialmente pela população negra, que foram agravados pela propagação do novo Coronavirus que contribuiu para levar a economia norte-americana à recessão e à elevação vertiginosa do desemprego nos Estados Unidos.
Sobre o racismo, é importante observar que os Estados Unidos convive com a discriminação racial desde o período colonial quando os negros eram considerados mercadoria de seus donos e não indivíduos portadores de direitos. Essa situação só teve fim com o término da Guerra Civil que transcorreu entre os anos de 1861 e 1865. Após a guerra civil, houve o processo de reconstrução do país com a reincorporação dos estados do Sul escravocrata ao restante do país. Nesse período, nos anos finais da década de 1860, era inaceitável para muitos cidadãos brancos sulistas que os negros, recém-libertos, tivessem os mesmos direitos e ocupassem os mesmos espaços que eles. No mesmo ano em que terminou a guerra civil (1865) foi formada a seita Ku Klux KLan que desenvolvia ação violenta contra os negros que voltaria com muita força e milhares de adeptos no início do século XX. Os entraves sociais provocados pelas leis de segregação racial nos Estados Unidos e o virulento racismo delas decorrente só começariam, de fato, a ser ao menos parcialmente resolvidos com os movimentos de luta pelos direitos civis dos negros. Um dos líderes desses movimentos tornou-se símbolo dessa luta: Martin Luther King Jr. que foi assassinado. Nem mesmo a presença de um negro na presidência da República como Barack Obama contribuiu para arrefecer o racismo nos Estados Unidos.
Mas, além do racismo que continua presente nos Estados Unidos, existe uma acentuada piora em diversos indicadores sociais do país que contribuem para o levante popular. O último relatório do PNUD divulgado pelas Nações Unidas, comprova que os Estados Unidos veem perdendo a capacidade de gerar bem estar à sua população. Dados ligados à educação, saúde, desigualdade e estratificação social equiparam os Estados Unidos a diversos países periféricos e semiperiféricos do capitalismo. Os Estados Unidos são considerados o país mais rico do mundo e dono da maior economia do planeta. No entanto, este fato não se converte em bem-estar para seus habitantes devido à excessiva concentração de riqueza e renda. Os Estados Unidos registram indicadores de desenvolvimento social significativamente abaixo de outros países ricos. Os Estados Unidos sempre tiveram uma péssima rede de segurança social. Os programas sociais não contemplam benefícios universais, como é o caso em muitos outros países industrializados, além de haver enormes disparidades de riqueza. Na realidade, há vários indicadores de desenvolvimento social em que os Estados Unidos aparecem atrás na comparação com outros países ricos e muitas vezes, lado a lado com países periféricos e semiperiféricos do capitalismo.
Apenas a luta contra o racismo não é suficiente para explicar este levante que ocorre no momento nos Estados Unidos. O levante popular atual se explica, também, pelas crescentes desigualdades sociais que se registram nos Estados Unidos que foram agravadas pela propagação do novo Coronavirus que levou a economia do país à recessão e ao desemprego de 40 milhões de trabalhadores. Ao invés de buscar a construção da coesão e da paz social apresentando soluções para a questão do racismo e das desigualdades sociais para colocar um fim no levante popular, Donald Trump anunciou em 1º de junho que iria enviar militares norte-americanos às ruas do país caso os governadores e prefeitos não pusessem fim à violência nos protestos que ocorrem pelo país. Além disso, Trump disse que faria o possível para garantir cumprimento do toque de recolher. Diversas cidades dos Estados Unidos adotaram esta medida. Porém, em vários locais, os protestos continuaram mesmo com esta restrição. Governadores em diversos estados norte-americanos pediram reforço de integrantes da Guarda Nacional que atuam já em cada um desses locais. O primeiro a pedir ajuda foi Minnesota, justamente o estado onde George Floyd foi assassinado.
Enquanto Trump discursava em 1º de junho, os arredores da Casa Branca registravam confrontos entre forças de segurança e manifestantes, após protesto que começou pacífico. De acordo com a imprensa norte-americana, o presidente enviou de 600 a 800 militares da Guarda Nacional a Washington. Trump se aproveitou para galvanizar sua base conservadora de eleitores, apontando como vilões pelos distúrbios violentos os antifas, grupo antifascista, e grupos radicais de esquerda, que têm como alvos o confronto com tudo que consideram de extrema direita. Um fato é evidente, a burguesia norte-americana, a mais rica e poderosa do mundo, está colocando todo o aparato de repressão estatal para sufocar o levante popular que é uma expressão legítima do ódio contra a miséria, a pobreza e a opressão política e racial no país. Diversas medidas de exceção estão sendo adotadas por Trump, como a implementação de toque de recolher, repressão a repórteres e jornalistas e prisões massivas de cidadãos.
A ação do governo Donald Trump deixa evidente que a democracia nos Estados Unidos se esfacelou com os atos repressivos em execução. A mobilização popular que colocou 1 milhão de pessoas nas ruas dos Estados Unidos em 6 de junho de 2020 está pondo em xeque o regime político e social nos Estados Unidos. Resta saber se haverá profundas mudanças políticas, econômicas e sociais nos Estados Unidos em 2020 em consequência da revolta popular em curso ou se ocorrerá o mesmo que aconteceu na França em 1968 quando houve derrota das forças que desejavam realizar mudanças profundas na sociedade francesa. Muito provavelmente, a revolta popular nos Estados Unidos impedirá que Donald Trump seja reeleito presidente por sua política antissocial e suas atitudes repressivas contra os movimentos sociais abrindo caminho para a vitória do democrata Joe Biden que fará algumas concessões como a reforma da polícia, a implantação de um sistema público de saúde e de algumas demandas da sociedade. Mesmo assim, não haverá mudanças profundas no império norte-americano como aconteceu com a revolta de maio de 1968 que não levou à realização de mudanças profundas na sociedade francesa.
Conclusões
Maio de 1968 e Maio de 2020 são levantes que deverão se repetir em todo o mundo porque as condições econômicas e sociais das populações deverão se agravar ao longo do tempo com o desmoronamento do sistema capitalista mundializado. Para impedir seu provável fim em meados do século XXI diante da tendência de queda da taxa de lucro global e da taxa de crescimento do Produto Bruto Mundial de alcançar o valor zero, os detentores do poder no sistema capitalista mundial agirão para aumentar a exploração da força de trabalho e a repressão contra os movimentos sociais em todo o mundo. Para alcançar este objetivo, o sistema capitalista globalizado coloniza todos os setores da vida com a opressão política, econômica e social. A alienação das pessoas com o uso dos aparelhos ideológicos de estado (escola, igreja e mídia) é a principal arma utilizada pelos detentores dos meios de produção e do poder político para evitar a conscientização da população mundial a respeito da servidão econômica e política em que se acha submetida e que dela resulte a rebelião contra os desumanos sistemas econômicos e políticos em vigor.
Na democracia parlamentar atual, não existe oposição ao “status quo”, pois os partidos políticos dominantes estão de acordo sobre o essencial que é a conservação da atual sociedade capitalista. São pouquíssimos os partidos políticos susceptíveis de chegar ao poder porque duvidam do dogma do mercado. O sistema representativo e parlamentar limita o poder dos cidadãos pelo simples direito ao voto, ou seja, a nada. As cadeiras do Parlamento estão ocupadas pela imensa maioria da classe econômica dominante, seja ela de direita ou da pretendida esquerda democrática. Muito dificilmente, haverá mudança pela via parlamentar nas condições atuais. Mas, à medida que o tempo passa, os detentores do poder em todo o mundo não serão capazes de evitar levantes dos povos que se conscientizarão e os transformarão em revolução social para mudar a ordem dominante. Maio de 1968 e maio de 2020 são ensaios gerais da grande onda que varrerá o sistema capitalista mundial da vida das pessoas em todo o mundo com a implantação de uma nova ordem política, econômica e social verdadeiramente democrática
* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).