CRISE INTELECTUAL ATUAL DO PENSAMENTO EXIGE NOVO ILUMINISMO

Fernando Alcoforado*

O mundo se defronta na era contemporânea com várias crises. A cada dia que se passa, essas crises se aprofundam nas áreas econômica, política, social e ambiental, seja nos planos nacionais, seja em escala planetária. Mas, a maior crise vivida hoje pela humanidade é a crise intelectual do pensamento que se constitui no principal obstáculo à superação das demais crises e à construção de uma nova sociedade centrada no real progresso econômico, político, social e ambiental. A crise intelectual do pensamento da era contemporânea é que faz com que o mundo em que vivemos funcione de forma caótica como uma nave à deriva rumo ao desastre.

No século XVIII, vários pensadores começaram a se mobilizar em torno da defesa de ideias que pautavam a renovação de práticas e instituições vigentes em toda Europa. Levantando questões filosóficas que pensavam a condição e a felicidade do homem, o movimento iluminista atacou sistematicamente tudo o que era considerado contrário à busca da felicidade, da justiça e da igualdade social. O movimento iluminista foi baseado na crença do poder da razão e do progresso, na liberdade de pensamento e na emancipação política.  O iluminismo foi um movimento global, filosófico, político, social, econômico e cultural, que defendia o uso da razão como o melhor caminho para se alcançar a liberdade, a autonomia e a emancipação política. O Iluminismo do século XVIII usou valores da ciência clássica para forjar uma nova visão de mundo, baseada na igualdade de todos.

Com o iluminismo passa-se a ter uma visão otimista do mundo que não teria como interromper seu progresso na medida em que o homem contava com o pleno uso de sua racionalidade. Os direitos naturais, o respeito à diversidade de ideias e a justiça social deveriam promover a melhoria da condição humana. Oferecendo essas ideias, o iluminismo motivou as revoluções burguesas na França e em todo o mundo no século XVIII que trouxeram o fim do Antigo Regime e a instalação de doutrinas de caráter liberal que predominam no mundo até a era contemporânea.

O Iluminismo forneceu o lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) e fecundou-a na medida em que seus seguidores se opunham às injustiças, à intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo. No entanto, desde a Revolução Francesa até o presente momento, as promessas políticas do Iluminismo foram abandonadas em todo o mundo com a adoção de práticas desumanas cada vez mais sofisticadas pelos governos e imperialistas pelas grandes potências capitalistas, o desencadeamento de 3 guerras mundiais (1ª Guerra Mundial, 2ª Guerra Mundial e a Guerra Fria), o advento do fascismo, do nazismo e do neofascismo, a realização de intervenções militares e realização de golpes de estado em vários países do mundo.

A Modernidade nasceu com a 1ª Revolução Industrial ocorrida em 1876 na Inglaterra significando um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a ciência e a razão e descobrir as leis universais para serem postas a serviço da humanidade. Com a Revolução Industrial, a ciência e a tecnologia adquiriram uma importância fundamental para o progresso humano, mediante as contínuas inovações tecnológicas. A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado em busca da felicidade humana e do enriquecimento da vida diária.

A Modernidade está geralmente associada à 2ª Revolução Industrial resultante de transformações socioeconômicas com a industrialização da Inglaterra, da França, da Alemanha, da Itália, dos Estados Unidos e do Japão, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço e pelo surgimento de novas máquinas, ferramentas e produtos químicos (como o plástico). Entre 1909, quando Henry Ford criou a linha de montagem e inaugurou a produção em série, e o final do século XX, quase todas as indústrias se mecanizaram e a automação se estendeu a todos os setores fabris.

A Modernidade é identificada com a crença no progresso e nos ideais do Iluminismo. Entretanto, a evolução da Modernidade foi marcada por eventos que marcaram negativamente a sociedade atual. O principal deles foi sem dúvida às catástrofes da I e da II Guerra Mundial. Na verdade, a ciência e a tecnologia contribuíram para a barbárie de duas guerras mundiais com a invenção de armamentos bélicos poderosos e destrutivos. A ciência e a tecnologia passaram a ser utilizadas numa escala sem precedentes tanto para o bem como para o mal. Todo esse desenvolvimento científico e tecnológico culminou na era atual com uma crise ecológica mundial que pode resultar em uma mudança climática global catastrófica que pode ameaçar a sobrevivência da humanidade em meados do século XXI. Nesse sentido pode-se duvidar dos reais benefícios trazidos pelo progresso científico e tecnológico com o advento da Modernidade.

As teses políticas do Iluminismo fracassaram desde a Revolução Inglesa (1640), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Este fracasso abriu caminho para o advento da ideologia marxista em todo o mundo que se propunha a dar um passo à frente em relação ao Iluminismo buscando o fim da exploração do homem pelo homem com a redução das desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro, sua completa abolição com a implantação do comunismo. Os fatos da história demonstram que as teses iluministas que nortearam as revoluções burguesas no século XVIII e o Marxismo com base nas quais foram realizadas as revoluções socialistas no século XX fracassaram porque não cumpriram suas promessas históricas de conquista da felicidade humana e do progresso econômico compartilhado por todos.

O fim do socialismo na União Soviética e nos países da Europa Oriental, o fracasso do desenvolvimento econômico em Cuba e na Coréia do Norte e o abandono pela China do socialismo baseado no modelo soviético, com a adoção de uma economia híbrida do capitalismo de estado, demonstram a inviabilidade do modelo socialista soviético. Para evoluir em direção a uma sociedade comunista defendida por Marx, é necessário passar por um estágio intermediário de economia mista nos moldes da social-democracia dos países escandinavos. O comunismo preconizado por Marx só poderá ser construído quando existir o Estado de Bem-Estar Social em cada país e o mundo alcançar a integração econômica, social e política com a existência de um governo mundial que assegure o ordenamento da economia global para evitar o caos atual, o ordenamento nas relações internacionais para evitar as guerras e assegurar a paz mundial e o ordenamento do meio ambiente global para evitar a degradação da natureza.

O fracasso do Iluminismo e do Marxismo na realização do progresso da humanidade e na conquista da felicidade para os seres humanos abriu caminho para o advento da Pós-Modernidade que representa uma reação cultural à perda de confiança no potencial universal do projeto iluminista e Marxista de sociedade. A Pós-modernidade significa, portanto, uma reação àquilo que é moderno. Na Pós- Modernidade, o mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis e projetados para imediata obsolescência e descarte. A Pós-Modernidade pode ser caracterizada como uma reação à cultura ao modo como se desenvolveram historicamente os ideais da Modernidade, associada à perda de otimismo e confiança no potencial universal do projeto iluminista e marxista. Configura-se, também, como uma rejeição à tentativa de colonização pela ciência e pela tecnologia das demais esferas da vida do homem.

Na era contemporânea, a razão e a ciência entraram também em crise profunda com a derrota dos paradigmas do Iluminismo e do Marxismo na segunda metade do século XX que foram substituídos pelo novo paradigma da Pós-Modernidade que, segundo seus ideólogos, não existem verdades. Após constatar que todos os sistemas anteriores estavam errados, o pós-modernismo chegou à trágica conclusão de que nada pode ser conhecido. Os pós-modernistas não acreditam na razão. Para os pós-modernistas, mesmo a ciência seria apenas uma entre várias formas de se conhecer a realidade, sem nada dizer respeito à verdade.

O pensamento pós-moderno é convergente com o niilismo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o filósofo da Alemanha nazista, que em sua obra, A Vontade de Potência (Petrópolis: Editora Vozes, 2011), afirmou que a solução para a crise estava na rejeição da razão e no retorno dos profetas, que deveriam, não através da razão, mas da determinação, fundar novos valores que iriam guiar os povos e erguer novas civilizações. Se prevalecer o pensamento niilista de Friedrich Nietzsche, a humanidade caminhará inevitavelmente para o desastre econômico, político, social e ambiental que poderá ameaçar sua sobrevivência. O grande desafio dos homens e mulheres de pensamento da era contemporânea consiste em reinventar o Iluminismo ajustado aos tempos atuais para que ele possa indicar os caminhos que a humanidade terá de trilhar visando a construção de um mundo melhor.

Conclui-se, pelo exposto, que o desaparecimento no mundo de hoje das últimas reservas de racionalidade crítica preconizada pelo Iluminismo e pelo Marxismo abriram caminho para a Pós-Modernidade que representa uma gigantesca ameaça para o progresso da humanidade. Diante deste fato, trata-se de um imenso desafio para os pensadores contemporâneos estabelecer novos paradigmas e novos valores de comportamento racional a serem formulados para a sociedade humana na era atual visando derrotar a nefasta influência política e ideológica da Pós-Modernidade. Os pensadores contemporâneos precisam se mobilizar na reinvenção de um novo projeto iluminista como fizeram os pensadores do século XVIII visando a construção de um mundo novo que leve ao fim o calvário da humanidade.

Precisamos de um novo Iluminismo para o século XXI. No centro do novo pensamento, deve estar a proteção de todas as formas de vida e do planeta. O único progresso humanamente relevante é o que contribui de fato para o bem-estar de todos os seres humanos e a preservação da natureza que os automatismos do crescimento econômico não bastam para assegurá-lo. O progresso, nesse sentido, não deve ser visto como uma doação espontânea da técnica, mas uma construção intencional pela qual os homens decidem o que deve ser produzido, como e para quem, evitando ao máximo os custos sociais e ecológicos de uma industrialização selvagem. Esse progresso não pode depender nem de decisões empresariais isoladas, como é preconizado pelos ideólogos do neoliberalismo,  nem das diretrizes burocráticas de um Estado centralizador, como é defendido pelos ideólogos do socialismo nos moldes soviéticos, e sim de impulsos emanados da própria sociedade.

O Iluminismo do século XXI mantém sua fé na ciência, mas sabe que ela precisa ser controlada socialmente e que a pesquisa científica e tecnológica precisa obedecer aos fins e valores estabelecidos com base no consenso social, para que ela não se converta numa força cega, a serviço da guerra e da dominação. Assume como sua bandeira mais valiosa a doutrina dos direitos humanos, sem ignorar que na maior parte da humanidade só profundas reformas sociais e políticas podem assegurar sua fruição efetiva. Combate o poder ilegítimo, consciente de que ele não se localiza apenas no Estado tirânico, mas também na sociedade, em que ele se tornou invisível e total, molecular e difuso, aprisionando o indivíduo em suas malhas tão seguramente como na época da monarquia absoluta. Luta sem quartel pela liberdade e contra a opressão de qualquer espécie. Edificar uma nova ordem mundial que seja capaz de organizar não apenas as relações entre os homens na face da Terra, mas também suas relações com a natureza. Elaborar um contrato social planetário que possibilite o desenvolvimento econômico e social e o uso racional dos recursos da natureza em benefício de toda a humanidade.

* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017),  Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).

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Author: falcoforado

FERNANDO ANTONIO GONÇALVES ALCOFORADO, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).

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