Fernando Alcoforado*
Este artigo visa apresentar a gênese da ciência e sua evolução desde a Antiguidade até a era contemporânea. Os filósofos da ciência e cientistas consideram as investigações antigas da natureza como sendo pré-científicas. Mesmo sem o uso do método científico inaugurado por Galileu Galilei na Idade Média, as investigações da natureza anteriores a este período, consideradas pré-científicas,contribuíram enormemente para o avanço da ciência. Desde o seu início na Suméria (no atual Iraque) por volta de 3599 a.C. as pessoas da Mesopotâmia começaram a tentar registrar algumas observações do mundo usando dados numéricos. Mas suas observações e medições não eram feitas com base nas leis da ciência.
Houve grande contribuição considerada pré-científica dos árabes, hindus e gregos no desenvolvimento da Matemática que é um alicerce fundamental da ciência moderna. Por volta dos séculos IX e VIII a.C, a Matemática era pouco desenvolvida na Babilônia. Os babilônios e os egípcios já tinham uma álgebra e uma geometria, mas somente o que bastasse para as suas necessidades práticas, e não uma ciência organizada. Avanços significativos do Egito Antigo incluem astronomia, matemática e medicina. Os habitantes da civilização hindu também tentaram padronizar a medição do comprimento com alta precisão. Eles criaram uma régua – régua Moenjodaro – cujas unidades de medida (3,4 centímetros) eram divididas em dez partes iguais. A Matemática só passou a ser considerada como ciência, no sentido moderno da palavra, a partir dos séculos VI e V a.C. na Grécia.
Na Índia, foi desenvolvido outro tipo de cultura matemática: a Álgebra e a Aritmética. Os hindus, com Brahmagupta, introduziram um símbolo completamente novo no sistema de numeração até então conhecido: o zero. Isto causou uma verdadeira revolução na “arte de calcular”. A cultura dos hindus foi propagada pelos árabes. Estes levaram à Europa os denominados “algarismos arábicos” inventados pelos hindus quando ocuparam a península ibérica de 711 a 1492. O astrônomo e matemático indiano Aryabhata introduziu na Matemática várias funções trigonométricas como seno e cosseno e algoritmos de álgebra.
Como investigação considerada de natureza pré-científica, Brahmagupta trabalhou em um preciso modelo heliocêntrido da gravitação, incluindo órbitas elípticas, considerando a circunferência da Terra e a distância dos planetas em relação ao Sol. No século VII, Brahmagupta reconheceu a existência da força de gravidade como uma força de atração. Traduções árabes dos textos astronômicos estiveram logo disponíveis para o mundo islâmico ao introduzir o que se tornaria os algarismos arábicos, sistema numérico hindu erroneamente denominado arábico para o mundo islâmico do século IX e que atualmente é largamente usado no mundo.
Os historiadores ocidentais da ciência geralmente sustentam que os fundamentos da trigonometria como uma ciência independente foram estabelecidas pelo matemático e astrônomo alemão Regiomontanus. No entanto, o real crédito pela fundação da trigonometria pertence ao matemático árabe Nasir al-Din al-Tusi. Os cientistas árabes muçulmanos contribuíram para o desenvolvimento de vários ramos da ciência e tecnologia através de vários trabalhos em matemática, botânica, química, medicina e cirurgia, ótica, anatomia, astronomia, instrumentos e dispositivos astronômicos e geografia. Um tratado sobre matemática foi escrito por Al-Khwarizmi e matemáticos muçulmanos inventaram o símbolo x (que significa no árabe shay = coisa / algo indefinido), para expressar uma quantidade desconhecida. Este símbolo chegou à Europa via Espanha islâmica.
Os matemáticos mulçumanos Ibn al-Haytham, Al-Tusi e Albiruni fizeram contribuições altamente originais para a geometria e trigonometria, que superaram as teorias e métodos do matemático grego Euclides. O crédito pela fundação da trigonometria pertence a Al-Tusi. Os físicos muçulmanos colocaram muita ênfase em experimentos na busca da verdade científica. Isso levou ao desenvolvimento de um método científico inicial no mundo muçulmano começando com os experimentos de Ibn al-Haytham na ótica nos anos 1000, em seu Book of Optics. Ibn al-Haytham é também considerado como o pai da ótica. O desenvolvimento mais importante do método científico foi no uso de experimentos para distinguir entre um conjunto de teorias científicas concorrentes geralmente com uma orientação empírica.
Roger Bacon é considerado o fundador do método experimental em ciência sendo grandemente influenciado pelas opiniões de cientistas muçulmanos, matemáticos e físicos, incluindo Ibn al-Haytham, Al-Razi, Ibn Zuhr e Al-Zahrawi, que séculos antes de Bacon, enfatizaram que o método experimental estava no coração da pesquisa científica. Os cientistas muçulmanos deram grande ênfase à observação cuidadosa do fenômeno natural, à uma avaliação objetiva e imparcial de todo conhecimento científico e, acima de tudo, na confirmação de conclusões através do método científico. O crédito pela invenção do método experimental na ciência deveria ser atribuída a cientistas muçulmanos, como Ibn al-Haytham, Al-Razi, Ibn Zuhr e Albiruni. Foi Ibn al-Haytham quem apresentou pela primeira vez um novo caráter metódico nas ciências naturais, uma metodologia que claramente distingue-o da abordagem grega e da época de Galileu, ligada à modernidade.
A Matemática grega se distingue da babilônica e egípcia porque os gregos fizeram-na uma ciência sem a preocupação com suas aplicações práticas. Do ponto de vista de estrutura, a Matemática grega se distingue da anterior, por ter levado em conta problemas relacionados com processos infinitos, movimento e continuidade. As diversas tentativas dos gregos de resolverem tais problemas fizeram com que surgisse o método axiomático-dedutivo. Este método consiste em admitir como verdadeiras certas proposições (mais ou menos evidentes) e a partir delas, por meio de um encadeamento lógico, chegar a proposições mais gerais. As dificuldades com que os gregos se depararam ao estudar os problemas relativos a processos infinitos (sobretudo problemas sobre números irracionais) talvez sejam as causas que os desviaram da Álgebra, encaminhando-os em direção à Geometria. Realmente, é na Geometria que os gregos se destacam, culminando com a Geometria do grande matemático Euclides.
Na Grécia, Arquimedes, que ficou muito famoso por causa de suas revolucionárias invenções como o denominado Parafuso de Arquimedes utilizado para elevar água, as catapultas usadas como armas de guerra e o uso das alavancas para mover cargas pesadas, desenvolve, também, a Geometria introduzindo um novo método que seria um verdadeiro germe do qual mais tarde iria brotar um importante ramo de Matemática (teoria dos limites). Apolônio de Perga, contemporâneo de Arquimedes, dá início aos estudos das denominadas curvas cônicas: a elipse, a parábola, e a hipérbole, que desempenham, na matemática atual, papel muito importante. Depois de Apolônio e Arquimedes, a Matemática grega entra no seu ocaso.
Ainda como investigação considerada de natureza pré-científica, pode-se citar a experiência da China que possui uma longa e rica história de contribuição científica e tecnológica. As 4 grandes invenções da China são a bússola, pólvora, produção de papel e impressão. Essas quatro descobertas tiveram um enorme impacto no desenvolvimento da civilização da China e um impacto global com um alcance ainda maior. Francis Bacon identificou o papel, bússola magnética, pólvora e impressão como as principais invenções que separavam o mundo moderno do mundo tradicional. Ele não sabia que cada uma dessas invenções teve origem na China. Há muitos contribuintes notáveis no campo da ciência chinesa. Um dos melhores exemplos seria Shen Kuo (1031–1095), um cientista e homem de estado polímata que foi o primeiro a descrever a bússola de agulha magnetizada usada para a navegação, descobriu o conceito de norte verdadeiro e projetou o uso de diques secos para consertar os barcos.
O Renascimento marcou um período único e inigualável na história da ciência porque é considerado como um momento crítico ou ponto de virada na história europeia com o nascimento da ciência moderna, o advento da modernidade, o florescimento da arte e da arquitetura moderna e o início do capitalismo. É importante observar que o Renascimento ocorrido na Europa contou com o intercâmbio cultural, transferência de conhecimento, confluência de ideias, ciência e tecnologia que reconectou a Europa ao Oriente através da Andaluzia, Sicília, Veneza, Gênova e o comércio com o Levante. Os fatos que relatamos sobre a contribuição dos hindus, árabes e chineses aos avanços científicos demonstram que houve na Europa a apropriação desses conhecimentos e o não reconhecimento de seus verdadeiros autores.
Em seu livro The Theft of History, Jack Goody usa uma metáfora evocativa – o “roubo da história” – para descrever um aspecto particularmente iníquo do Eurocentrismo de se apropriar dos avanços científicos do Oriente. O roubo da história, segundo Goody, refere-se à aquisição ou expropriação da história pelo Ocidente, especialmente pela Europa Ocidental e imposta ao resto do mundo. O roubo da história ou o “roubo” pelo Ocidente das conquistas de outras culturas, segundo Goody, é refletido na visão amplamente difundida entre intelectuais e historiadores ocidentais de que uma das instituições-chave dos tempos modernos, como a ciência, foi inventadas na Europa. Goody argumenta que a Europa negligenciou ou deliberadamente subestimou a história do resto do mundo.
Percebe-se, pelo exposto, que as investigações consideradas de natureza pré-científicas contribuíram enormemente para o avanço da ciência não devendo ser consideradas pejorativamente como pré-científicas e sim como científicas porque os hindus, árabes, chineses e gregos construíram os alicerces do grande edifício da ciência moderna. Oficialmente a ciência moderna tal qual a conhecemos começa com Galileu Galilei com o seu método de matematizar a natureza. Ciência não é apenas técnica, não é apenas experiência, mas, segundo o método de Galileu, visa traduzir a experiência matematicamente. Galileu considerou que os fenômenos da natureza devem ser traduzidos quantitativamente, devem ser mensuráveis e baseados em leis matemáticas.
A Matemática é a ciência do raciocínio lógico que tem seu desenvolvimento ligado à pesquisa, ao interesse por descobrir o novo e investigar situações de alta complexidade. Atualmente, a Matemática é a ciência mais importante do mundo moderno porque ela está presente em todas as áreas científicas. A Revolução Científica, que começou no século XV, tornou o conhecimento mais estruturado e mais prático, absorvendo o empirismo como mecanismo para consolidar as constatações. Em meio a toda a efervescência favorável à Revolução Científica, a Matemática ganhou espaço e se desenvolveu com grande relevância para o desenvolvimento de um método científico mais rigoroso e crítico. A Matemática passou a descrever verdades científicas.
As grandes revoluções científicas na história da humanidade contemplam os avanços ocorridos no campo da metodologia científica como a quebra do paradigma aristotélico e sua substituição pelo método científico, na evolução da Matemática da Antiguidade à era contemporânea, com a evolução da teoria Geocêntrica para a Heliocêntrica, no desenvolvimento da Mecânica Clássica, com a evolução da Alquimia à Química Moderna, dos paradigmas estabelecidos na Mecânica Clássica aos novos paradígmas resultantes da Teoria da Relatividade, dos paradígmas deterministicos da Mecânica Clássica aos novos paradígmas probabilísticos resultantes da Mecânica Quântica, do determinismo científico criado pelas Ciências Clássicas à Teoria do Caos e do conhecimento parcial sobre o Universo até a descoberta recente da existência da matéria e da energia escura.
Ainda com relação às grandes revoluções científicas na história da humanidade houve mudanças na concepção do mundo com os avanços nas ciências da saúde que evoluiu dos parcos conhecimentos sobre a saúde humana à Medicina Moderna, da crença religiosa na criação divina à teoria da evolução das espécies de Charles Darwin e do desconhecimento sobre o corpo humano (DNA) ao mapeamento de todos os genes através do Projeto Genoma Humano. Houve, também, mudanças na concepção do mundo com os avanços nas ciências sociais quando se evoluiu da tradição da Psicologia como ciência da consciência estudada exclusivamente por filósofos ao status de ciência, dos parcos conhecimentos em Economia até a descoberta das leis que governam os sistemas econômicos e dos parcos conhecimentos sobre a realidade social à transformação da Sociologia em ciência.
Finalmente, na parte relativa às grandes revoluções científicas, estão contempladas as mudanças na concepção do mundo com os avanços nas ciências da sustentabilidade ambiental com o conhecimento aprofundado das forças da natureza e de seu impacto e da sociedade humana sobre o clima no planeta que possibilitou a formulação do modelo de desenvolvimento sustentável e o avanço do conhecimento sobre a transformação e utilização das várias formas de energia, sobretudo as fontes renováveis de energia, os avanços na ciência da educação quando se evoluiu da educação tradicional baseada na fragmentação do ensino à proposta de sua substituição pelo ensino transdisciplinar e integral e os avanços na ciência da informação com a evolução dos sistemas de informação desde a invenção da imprensa com Gutenberg até o surgimento dos computadores e da Internet no século XX e o desenvolvimento da inteligência artificial no século XXI.
Modernamente, a ciência e a tecnologia são desenvolvidas nas universidades e nas empresas. Hoje, qualquer pesquisa inclusive aquela desenvolvida fora das consagradas intituições de P&D precisa ser validada pela comunidade científica. Esta tem sido a prática em todos os campos da ciência desde Galileu na Idade Média. A regra adotada pela ciência moderna desde Galileu é a de que toda tese científica tem que ser comprovada experimentalmente e acatada pela comunidade científica para ter validade. Hoje, a Ciência é um conjunto de conhecimentos empíricos e teóricos sobre a natureza produzido por uma comunidade mundial de pesquisadores fazendo uso de métodos sistematizados e validados dentro dessa comunidade, que dá ênfase à observação, explicação e predição de fenômenos reais do mundo por meio de exploração e experimentação. Se não fosse assim, haveria o caos instalado na ciência.
REFERÊNCIAS
ALCOFORADO, Fernando. As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo. Curitiba: Editora CRV, 2016.
GOODY, Jack. The Theft of History. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
MOMIN, Professor A. R. Como a Ciência Islâmica mudou a Europa. Disponível no website <https://historiaislamica.com.br/ciencia-isla/>.
RONAN, Colin A. História Ilustrada da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
ROONEY, Anne. História da Matemática. São Paulo: M. Books, 2012.
* Fernando Alcoforado, 80, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019).