OS MÉTODOS DA CIÊNCIA NA VALIDAÇÃO DE MEDICAMENTOS E VACINAS E A PANDEMIA DO NOVO CORONAVIRUS

Fernando Alcoforado*

Este artigo tem por objetivo apresentar os métodos adotados pela ciência utilizados na validação de medicamentos e vacinas. Esta apresentação é de extrema relevância para mostrar aos leitores que nenhum medicamento ou vacina deve ser utilizado sem que que seja validado pelo método científico, isto é, não pode ser utilizado sem passar por testes rigorosos para comprovar sua eficácia e segurança para seus usuários. Este esclarecimento é bastante importante porque no Brasil e no mundo surgiram defensores de medicamentos e de tratamento precoce da covid-19 sem haver nenhuma demonstração de sua validade científica comprometendo o combate à pandemia do novo coronavirus e contribuindo para o crescimento de infectados e mortos com a escalada da pandemia. O que aconteceu há milênios, quando a medicina era baseada em crendices populares para tratar ou prevenir determinadas doenças para que todos passassem a usá-la, está ocorrendo no Brasil e em vários países do mundo no momento. Estas condutas absurdas voltaram a acontecer no Brasil com a pandemia do novo coronavirus praticadas pelo presidente Jair Bolsonaro, seus seguidores e, até mesmo, surpreendentemente, por alguns médicos que sugerem a adoção de medicamentos e de tratamento precoce da covid-19 sem nenhuma base científica.  

Estas condutas absurdas deixaram de ocorrer no passado quando a medicina conseguiu incorporar o método científico à sua prática diária. Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), médico grego, considerado o pai da Medicina, o mais célebre médico da Antiguidade, foi o iniciador da observação clínica.  Foi ele quem lançou as bases para uma abordagem racional da medicina. Os escritos de Hipócrates reúnem mais de setenta tratados que abrangem diversos assuntos, enfatizando a importância do tratamento e do prognóstico. Hipócrates sugeriu que os médicos abandonassem as análises subjetivas e observassem o paciente. A objetividade é a base da medicina de Hipócrates e observada nas práticas médicas de hoje em dia. O racionalismo foi aplicado pela primeira vez à medicina com Hipócrates. Na Europa, no entanto, essa relação sofreu um hiato durante a Idade Média (entre os séculos V e XV), quando as doenças voltaram a ser atribuídas a causas divinas e as igrejas se tornaram os locais de curas milagrosas. Foi durante o Renascimento que a medicina moderna começou na Europa. Os cientistas e pesquisadores se desvencilharam da visão tradicional baseada na ordem divina que justificava as doenças e seu tratamento. Os tratamentos passaram a ser determinados por observações, experimentos e conclusões embasadas pela pesquisa científica.

É exatamente o método científico que permite fazer com que medicamentos para cura de doenças e vacinas para prevenir sua ocorrência sejam aceitos pela comunidade científica e, também, pelos órgãos de governo responsáveis pela aprovação de seu uso em cada país. O método científico compreende duas abordagens do conhecimento complementares: a empírica (indutiva) e a racional (dedutiva) (Figura 1). Na abordagem indutiva, empregada em ciências descritivas como biologia, anatomia e geologia, extraem-se princípios gerais a partir da análise de dados coligidos através da observação e da experimentação. O método indutivo ou de indução consiste no registo preciso e válido de experimentações e observações sobre o que é objeto de pesquisa constituindo a base empírica de todos os ramos da Ciência, inclusive a Medicina. A indução permite o estabelecimento de proposições gerais sobre uma classe de fenômenos com base na análise de um número limitado de experimentações e observações de elementos selecionados. Por exemplo, tendo verificado que a penicilina é útil na cura da pneumonia num número limitado de doentes, propõe-se seu uso generalizado.

No método dedutivo, empregado na matemática e na física teórica, as verdades são derivadas de princípios elementares que têm que ser avaliadas com base em experimentações e/ou observações. Vale notar que o método dedutivo é utilizado na filosofia, na formulação de leis científicas, na educação e é utilizado na resolução de problemas de física e matemática. Este método é usado geralmente para testar hipóteses já existentes para assim, provar teorias. Por isso, ele é também denominado de método hipotético-dedutivo. O método dedutivo parte de uma proposição universal que, através do raciocínio lógico, chega-se a uma conclusão válida. Sendo assim, nesse tipo de raciocínio lógico, chega-se a uma conclusão a partir das premissas. O método dedutivo não acrescenta informação nova na conclusão uma vez que ela surge pelo que já estava implícito nas premissas. O método dedutivo é uma estrutura de pensamento lógico que permite testar a validade de informações já existentes. É o caso da medicina baseada em evidências que se utiliza do método dedutivo como processo de sistematicamente descobrir, avaliar e usar achados de investigações como base para decisões clínicas.  

O Método Científico indutivo e dedutivo estão representados de modo simplificado e esquemático na Figura 1:

Figura 1- O Método Científico

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Os avanços da Ciência, ao longo dos últimos séculos, devem-se ao desenvolvimento de instrumentos de auxílio à observação cada vez mais poderosos. As características essenciais para uma observação poder ser considerada científica são a precisão, validade e reprodutibilidade. As observações, quando adequadamente sintetizadas e confirmadas por outros, constituem a base factual, empírica, do conhecimento científico. As teorias científicas devem levar à formulação de um conjunto de proposições empiricamente verificáveis, ou seja, hipóteses verificáveis. Depois da evidência ter sido colhida, o pesquisador decide se os achados são consistentes ou não com as predições da hipótese. Se a hipótese é confirmada pela evidência, então, a teoria de onde proveio a hipótese é fortalecida ou verificada. Porém, quando os dados não confirmam a hipótese, a teoria é rejeitada. Se uma teoria não consegue predizer ou explicar as observações torna-se inútil, e é normalmente substituída por novas teorias mais fortes e consistentes. Foi a aplicação do método científico acima descrito que permitiu o espetacular crescimento do conhecimento científico a que temos assistido nos últimos séculos e, em especial, nos últimos cem anos. É desta forma que o método científico contribui para descrever e explicar os resultados das pesquisas científicas. É importante notar que o método científico diz respeito a um conjunto de regras básicas de como o procedimento deve ser para produzir conhecimento científico, seja um conhecimento novo, uma correção ou um aumento de conhecimento previamente existente. Na maioria das disciplinas científicas, o método científico consiste em juntar evidências empíricas verificáveis baseadas na observação sistemática e controlada, geralmente resultantes de experiências ou pesquisa de laboratório ou de campo e analisá-las com o uso da lógica. O método científico nada mais é do que lógica aplicada à ciência.

A validação científica de produtos e processos na indústria farmacêutica consiste na realização de uma série de estudos com base no método científico que visa comprovar se um determinado produto, processo, equipamento, atividade ou procedimento realmente funcionam. É uma forma de comprovar que a indústria farmacêutica produzirá qualquer medicamento ou vacina seguindo uma maneira pré-determinada e segura, podendo, assim, ser utilizado em diversas situações repetidamente. É importante observar que o objetivo dos ensaios clínicos de medicamentos ou vacinas consiste em validá-los como eficiente e seguro. Para isso, uma série de procedimentos de investigação são realizados para comprovar a segurança (informações sobre os efeitos adversos) e eficácia do medicamento ou vacina em questão, garantindo a segurança do paciente. Ou seja, testes (ou ensaios) clínicos são estudos realizados com humanos e servem para comprovar se um medicamento funciona de forma segura e eficaz. Os testes clínicos avaliam os efeitos farmacológicos e adversos de uma vacina ou medicamento, bem como ele é absorvido, metabolizado e excretado pelo organismo humano. Eles são a última etapa em um longo processo de uma pesquisa sobre um medicamento ou vacina. Todas as vacinas em uso no mundo para imunizar a população mundial da covid-19 passaram por este processo para ser aceita pela comunidade científica.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) publicou artigo sob o título Como são as vacinas desenvolvidas? Disponível no website <https://www.who.int/pt/news-room/feature-stories/detail/how-are-vaccines-developed?gclid=CjwKCAjwiLGGBhAqEiwAgq3q_mWO4loToQxF38cHX6avtgy_R3piirzzpIGoTJOvg89sZ4EfvfZ7oBoCjEAQAvD_BwE>. Neste artigo, há a informação de que a maioria das vacinas são usadas há décadas, havendo milhões de pessoas que as recebem em segurança todos os anos. Tal como acontece com os medicamentos, todas as vacinas têm que passar por testes morosos e rigorosos para garantir sua segurança, antes de poderem ser introduzidas no programa de vacinação de um país. Cada vacina em desenvolvimento tem, em primeiro lugar, de ser submetida a exames e avaliações, para determinar qual antígeno deve ser usado para provocar uma resposta do sistema imunológico. Esta fase pré-clínica é feita sem testes em humanos. Uma vacina experimental é testada primeiro em animais, para se avaliar a sua segurança e potencial para prevenir a doença. Se a vacina desencadear uma resposta imunológica, passa a ser testada em ensaios clínicos com humanos em três fases. 

Na Fase 1, a vacina é inoculada num pequeno grupo de voluntários, para se avaliar a sua segurança, confirmar se ela gera uma resposta do sistema imunológico e determinar a dosagem certa. Geralmente, nesta fase, as vacinas são testadas em voluntários jovens e adultos saudáveis. Na Fase 2, a vacina é administrada a várias centenas de voluntários para continuar a avaliar a sua segurança e capacidade de gerar uma resposta do sistema imunológico. Os participantes nesta fase têm as mesmas características (idade, sexo) aos quais a vacina se destina. Nesta fase, normalmente, são feitos vários ensaios para avaliar diversos grupos etários e diferentes formulações da vacina. Um grupo que não tenha recebido a vacina é, normalmente, incluído nesta fase como grupo de comparação, para determinar se as alterações no grupo vacinado são atribuíveis à vacina ou ocorreram por acaso. 

Na Fase 3, a vacina é administrada a milhares de voluntários – e comparada com um grupo semelhante de pessoas que não levaram a vacina, mas receberam um produto de comparação (placebo) para determinar se a vacina é eficaz contra a doença que se destina a combater e para estudar a sua segurança num grupo muito mais alargado de pessoas. Na maior parte das vezes, os ensaios da fase 3 realizam-se em vários países e vários locais dentro dos países, para garantir que os dados do desempenho da vacina se aplicam a várias populações diferentes. Durante os ensaios da Fase 2 e da Fase 3, os voluntários e os cientistas que participam no estudo são impedidos de saber quais voluntários receberam a vacina do ensaio ou o produto de comparação (placebo). A isso chama-se “ensaio cego”, que é necessário para garantir que, nem os voluntários, nem os cientistas, sejam influenciados na sua avaliação sobre a segurança e a eficácia, ignorando qual o produto que cada um recebeu.

Depois de concluído o ensaio e finalizados todos os resultados, os voluntários e os cientistas do ensaio são informados sobre quem recebeu a vacina e quem recebeu o comparador (placebo). Quando os resultados de todos esses ensaios estiverem disponíveis, é necessário dar uma série de passos, incluindo análises de eficácia e segurança, para aprovação das entidades reguladoras e de saúde pública. Todo este processo é realizado em obediência ao método científico indutivo para determinar a eficácia e a segurança de uma vacina.  

O que acaba de ser exposto representa uma resposta aos negacionistas da ciência como Jair Bolsonaro e seus seguidores que insistem em defender o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes na cura da covid-19 como a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, entre outros medicamentos, além de contribuir com efeitos colaterais adversos. A sabotagem de Bolsonaro contra os esforços no combate à pandemia do novo coronavirus teve um novo capítulo na noite de 16 de junho passado quando voltou a atacar a vacina CoronaVac e mentiu mais uma vez ao dizer que esta vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac não tem comprovação científica. Bolsonaro mentiu em entrevista à SIC TV, afiliada à RecordTV, em Rondônia, ao afirmar que o prazo de validade da CoronaVac é em torno de 6 meses, que muita gente tem tomado e não desenvolve anticorpo nenhum e que essa vacina não tem comprovação científica ainda. Trata-se de uma mentira deslavada de Bolsonaro porque a CoronaVac passou pelos testes baseados no método científico e foi aprovada cientificamente pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela Anvisa no Brasil. É lamentável o comportamento de muita gente no Brasil que dominada pela cegueira política acredita nas mentiras de Bolsonaro.  

* Fernando Alcoforado, 81, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria) e Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019). 

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Author: falcoforado

FERNANDO ANTONIO GONÇALVES ALCOFORADO, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).

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