Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo demonstrar que a guerra na Ucrânia pode levar ao fim da globalização contemporânea e ao advento de uma nova ordem internacional. A invasão recente da Ucrânia pela Rússia gerou um terremoto econômico com a adoção pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e outros países de sanções econômicas e financeiras contra a Rússia sem precedentes. Entre as medidas estão a exclusão de bancos russos do sistema Swift de transferências financeiras internacionais e o congelamento de boa parte das reservas do Banco Central da Rússia da ordem de US$ 630 bilhões mantidas no exterior. Nunca na história da humanidade uma economia com a importância mundial como a da Rússia foi alvo de sanções econômicas e financeiras desse nível. Há um alto risco de a Rússia enfrentar uma crise financeira que pode levar seus maiores bancos ao colapso. A guerra econômica e financeira desencadeada pelas potências ocidentais para punir a Rússia pela invasão da Ucrânia visa asfixiar seu sistema econômico e financeiro e transformar a Rússia em um pária internacional. As sanções recentes podem ser apenas os primeiros passos para um corte severo e duradouro dos laços financeiros e econômicos da Rússia com o resto do mundo. As sanções adotadas têm o objetivo político de forçar a Rússia a negociar o fim da guerra em condições desvantajosas com a Ucrânia.
Trata-se, entretanto, de uma solução inócua porque as sanções econômicas e financeiras não farão a Rússia abandonar seu propósito de fazer com que seus objetivos se imponham na Ucrânia, isto é, a derrubada do governo ucraniano, o esmagamento das forças neonazistas lá existentes, o reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e Luhansk e, sobretudo, impedir que a Ucrânia se incorpore à OTAN. No entanto, a continuidade da guerra fará com que as sanções econômicas tenham potencial devastador para a economia da Rússia que podem levar, também, o mundo à recessão. Retaliações econômicas e financeiras devem ter consequências negativas para os próprios países que estão impondo as sanções e à economia global. A guerra na Ucrânia pode afetar o crescimento da economia mundial em 2022 graças ao impacto da inflação que poderá se elevar com a possibilidade de os preços do petróleo, gás natural e outras commodities crescerem vertiginosamente se houver a redução ou suspensão de seu suprimento pela Rússia. O aumento da inflação pode fazer com que os bancos centrais de todo o mundo elevem as taxas de juros. Com juros mais altos, a economia global tende a crescer menos. Há a possibilidade de uma recessão global ou mesmo depressão global que poderá ocorrer caso o conflito se generalize deixando a esfera restrita da Ucrânia e se espraiando pela Europa e pelo mundo.
A adoção pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e outros países de sanções econômicas e financeiras contra a Rússia com o propósito de asfixiar a economia russa sinaliza no sentido de que qualquer país do mundo que não se subordine às imposições das grandes potências capitalistas mundiais poderá sofrer as mesmas penalidades como as realizadas pela primeira vez na história contra a Rússia. Este episódio pode fazer com que cada nação reduza seu intercâmbio econômico e financeiro com o exterior e busque sua autossuficiência econômica para evitar que sofra as maléficas consequências da ação concertada das grandes potências ocidentais se o país não se dobrar a seus interesses. A autossuficiência econômica é a condição para que nenhuma nação seja asfixiada pelo poder das grandes potências ocidentais como ocorreu com a Rússia. Nessas circunstâncias, todos os países buscariam realizar o intercâmbio comercial com o resto do mundo sem se tornarem extremamente dependentes do exterior como ocorre atualmente com o processo de globalização econômica e financeira. Isto coloca em xeque o processo de globalização contemporânea inaugurado na década de 1990 que foi adotado para integrar os mercados mundiais e recebeu a adesão da maioria dos países do mundo, inclusive da Rússia e da China.
A globalização econômica e financeira foi adotada após o fim da Guerra Fria no início da década de 1990 visando promover a integração dos mercados mundiais quando foi criado um consenso no centro do capitalismo mundial de que a abertura dos mercados mundiais poderia levar a uma abertura política da Rússia e da China que, mais tarde, se alinhariam à nova ordem econômica mundial ou que, pelo menos, seriam parceiros econômicos importantes e não fariam nada que pudesse desestabilizar o sistema internacional. Foi com que esta perspectiva que Rússia e China foram admitidos na OMC (Organização Mundial do Comércio). O mundo se tornou cada vez mais integrado economicamente ao longo dos últimos trinta anos, livre de tensões geopolíticas capazes de comprometer o comércio internacional e o fluxo de capitais no mundo. Isto se tornou possível graças ao relacionamento econômico construtivo entre as principais economias como as dos Estados Unidos, da China, da União Europeia, do Reino Unido, do Japão, da Rússia, além de emergentes como Brasil e Índia. Devido à globalização econômica e financeira abraçada pela quase totalidade dos países do mundo, o sistema internacional dos últimos trinta anos se caracterizou pela ausência de confrontação séria entre as grandes potências (Estados Unidos, Rússia e China).
Esta ausência de confrontação não impediu, entretanto, que as grandes potências militares como os Estados Unidos, Rússia e China desenvolvessem ações visando seus fortalecimentos no campo militar. A ausência de confrontação entre as grandes potências militares não impediu que os diversos governos dos Estados Unidos desde 1990 promovessem a expansão da OTAN rumo às fronteiras da Rússia que teve início com o fim da União Soviética começando pelo Mar Báltico e atravessou a Europa Central passando pela intervenção nos Bálcãs (ex- Iugoslávia) e chegando até a Ásia Central e o Paquistão, ampliando as fronteiras da OTAN. Ao terminar a década de 1990, a distribuição geopolítica das novas bases militares norte-americanas não deixa dúvidas sobre a existência de um novo “cinturão sanitário‟, separando a Alemanha da Rússia e a Rússia da China. O bombardeio da Sérvia na ex-Iugoslávia em 1999 mostrou de forma nítida o quanto a estratégia de cerco organizada pelos Estados Unidos e seus aliados, através do avanço programado da OTAN e da União Europeia nas zonas antigamente controladas pela União Soviética, podia representar um perigo para a soberania da Rússia. A chegada de Vladimir Putin ao poder em 2000 na Rússia iria modificar radicalmente esse quadro geopolítico, até então muito desfavorável para os russos, porque marcou o início da recuperação geopolítica da Rússia, cuja posição tinha sido muito enfraquecida durante o governo Ieltsin na década de 1990. Putin considerou que a China poderia ajudá-la na sua resistência às ambições geopolíticas dos Estados Unidos tanto na Europa Oriental, quanto no Cáucaso ou na Ásia Central. A Organização da Cooperação de Xangai (Shanghai Cooperation Organization – SCO) foi criada em 2001 para estabelecer uma aliança entre a Rússia e a China em termos militares.
Para barrar a ascensão da China como potência hegemônica do planeta, a estratégia militar norte-americana está centrada na região Ásia-Pacífico. Como aliado dos Estados Unidos, o Japão colabora com a estratégia norte-americana de “cerco” da China reforçando seu poder militar. Outro objetivo da estratégia militar norte-americana é tambem pressionar a aliança da Rússia com a China desenvolvendo as ações da Otan na Europa e com o reforço de suas bases militares no Japão, Coréia do Sul e Diego Garcia e da Frota do Pacífico. Para lidar com esta situação, a China adotou 6 estratégias: 1) alcançar níveis elevados de crescimento econômico para ultrapassar os Estados Unidos; 2) elevar continuamente sua participação no comércio internacional para liderá-lo; 3) retirar dos Estados Unidos a liderança econômica e militar na Ásia, o que significa atingir o cerne do poder norte-americano na região; 4) impedir a Índia de se constituir como polo autônomo de atração econômica na Ásia, possivelmente em alinhamento com os Estados Unidos; 5) tornar-se potência imprescindível para a paz no golfo Pérsico entre persas (Irã) e árabes (particularmente a Arábia Saudita) com o declínio da influência dos Estados Unidos nesta região; e, 6) reforçar a aliança econômica e militar com a Rússia.
Para assegurar o progresso da globalização econômica e financeira iniciada na década de 1990, o governo dos Estados Unidos procurou manter uma convivência construtiva com a China e a Rússia no campo econômico desde 1990, sem abandonar, entretanto, seu propósito de se manter como potência hegemônica, do ponto de vista econômico e militar, durante todos os governos adotando o comportamento habitual de uma potência dominante que é a de tentar conter, enfraquecer economicamente ou simplesmente destruir qualquer outro ator com potencial para desafiá-la no futuro, como é o caso da China e, também, da Rússia. Esta tem sido a postura dos Estados Unidos adotada nos últimos cem anos para lidar com seus inimigos. Foi esta postura que guiou as ações deste país durante todo o século XX. Em todo este período, o governo dos Estados Unidos adotou a atitude padrão das potências hegemônicas, minando seus concorrentes antes que eles pudessem ameaçá-la. Esta é, também, sua postura para com a Rússia na questão da invasão da Ucrânia e com relação à China ao desencadear uma guerra comercial e promover o cerco de ambos os países do ponto de vista militar.
As ações das grandes potências capitalistas ocidentais lideradas pelos Estados Unidos durante a guerra na Ucrânia podem fazer com que chegue ao fim a ordem internacional que foi inaugurada em 1990 após o fim da União Soviética e acontecer o início de uma nova era nas relações internacionais cuja configuração ainda será materializada nos próximos anos. A preocupação com o fim de uma era foi expressa pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, em 24 de setembro de 2019, em relatório apresentado na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando escreveu que temia “a possibilidade de uma grande fratura: o mundo se dividindo em dois, com as duas maiores economias do mundo criando dois mundos separados e concorrentes, cada um com sua própria moeda dominante, regras comerciais e financeiras, suas próprias capacidades de internet e inteligência artificial e suas próprias estratégias geopolíticas e militares de soma zero”. É muito possível que a guerra na Ucrânia abra caminho para uma fratura no sistema internacional atual que funciona caoticamente há muito tempo e passe a existir dois sistemas: um sob a liderança dos Estados Unidos e outro sob a liderança da China e da Rússia. Governos, empresas e os cidadãos de todo o mundo precisam se preparar para este cenário que pode surgir com a fratura do debilitado sistema internacional atual. Neste cenário, passaríamos a conviver em um mundo bipolar similar ao que existiu de 1945 a 1990 durante a Guerra Fria quando coexistiram os sistemas capitalista sob a liderança dos Estados Unidos e socialista sob a liderança da União Soviética. A fratura do sistema internacional fará com que chegue ao fim a globalização atual inaugurada na década de 1990 e haja o início de uma nova era com dois sistemas econômicos liderados, respectivamente, pelos Estados Unidos e pela China.
Esta fratura do sistema internacional atual irá acelerar o fim do sistema financeiro internacional liderado pelo dólar norte-americano que há bastante tempo aponta para a perda acelerada da confiança nesta moeda. A perda de confiança no dólar se manifesta no fato de os bancos centrais de todo o mundo estarem excluindo há algum tempo a moeda norte-americana das suas reservas e ela já não é mais utilizada em muitas transações comerciais no mundo. Esta perda de confiança resulta do fato do sistema monetário baseado em papel-moeda emitido livremente e sem lastro pelos governos em todo o mundo, como é o caso dos Estados Unidos, é algo inerentemente instável cujas inevitáveis consequências desse processo são o crescimento econômico artificial e os maus investimentos que tal crescimento gera, e, finalmente, as depressões econômicas. O sistema financeiro internacional atual se desmoronará com o provável colapso do dólar, enquanto os bancos e o dinheiro estão com suas existências ameaçadas. Ressalte-se que o colapso do dólar como moeda de reserva mundial é impulsionado também pela possibilidade da explosão da bolha da dívida pública dos Estados Unidos que atingirá 140% do PIB até 2024. O fim dos bancos está próximo porque a tecnologia está colocando em xeque o mercado bancário, haja vista que, hoje, as pessoas se preocupam muito mais com a possibilidade de pagar qualquer coisa com um cartão de crédito ou débito, sem precisar tirar o dinheiro do banco. Isso está tornando os bancos desnecessários. O dinheiro, em sentido tradicional, morreu há duas décadas, eclipsado por uma economia de trocas digitalizadas. A morte do cheque, do dinheiro em papel ou em metal e do cartão de crédito e de débito está se acelerando os quais estão sendo substituídos por pagamentos digitais.
Países como o Brasil, que aderiram à globalização neoliberal desde 1990, acumulou mais perdas do que ganhos porque aumentou as desigualdades sociais, desindustrializou o País e teve pífio crescimento econômico até o momento atual. Os graves problemas econômicos e sociais vividos pelo Brasil no momento e a perspectiva de que venha a ocorrer o fim da globalização contemporânea indicam a necessidade de o Brasil abandonar o modelo econômico neoliberal que adotou desde 1990 e substituí-lo pelo modelo econômico nacional desenvolvimentista que priorizaria o desenvolvimento do mercado interno e das forças produtivas capazes de promover sua autossuficiência econômica. Além disso, o Brasil precisa estabelecer o lugar que pretende ocupar no novo mapa das relações internacionais. Para tanto, é preciso elaborar um plano estratégico de desenvolvimento de longo prazo.
* Fernando Alcoforado, 82, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019) e A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021).