Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo demonstrar que a inflação em curso atualmente na economia mundial pode levar ao colapso da globalização econômica e financeira contemporânea. A inflação é definida como o aumento contínuo, persistente e generalizado nos preços em geral. A globalização econômica e financeira é definida como a interdependência econômica entre os países ao redor do mundo, resultante de um volume e variedade crescentes de transações de bens e serviços através das fronteiras, bem como de uma maior mobilidade de fatores de produção, incluindo uma ampla difusão internacional de capitais e tecnologia. Com a persistência da inflação, a globalização econômica e financeira será levada ao colapso porque o mundo não conta com uma governança global capaz de coordenar a ação dos países no combate à inflação e a economia mundial ser afetada pela recessão resultante do aumento das taxas de juros adotado pelos governos de todos os países do mundo para controlá-la. Inflação global e recessão global farão com que o mundo se defronte com a estagflação global que levará ao colapso da globalização econômica e financeira quando muitos governos nacionais a abandonarão para não serem levados, também, ao colapso econômico.
A inflação no conjunto de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que são 38 no total, alcançou em 12 meses 8,8% em março de 2022, em comparação com 2,4% em março de 2021. Segundo a OCDE, foi o aumento mais acentuado desde outubro de 1988. Cerca de um quinto dos países que integram a OCDE registraram inflação de dois dígitos, com a taxa mais alta na Turquia. A inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) atingiu 11,3% no acumulado em 12 meses até março de 2022 no Brasil. Na Turquia, o índice é de 61,1% e na Argentina, 55,1%. Relatório da OCDE mostra que o Brasil tem a terceira maior inflação entre os países do G20, grupo das maiores economias do mundo, atrás apenas da Turquia e Argentina [IBET. Brasil tem 3ª maior inflação entre as grandes economias, mostra OCDE. Na conjunto de países do grupo G20, taxa em 12 meses atingiu 7,9% em março, contra 11,3% no Brasil; veja ranking. Disponível no website <https://www.ibet.com.br/brasil-tem-3a-maior-inflacao-entre-as-grandes-economias-mostra-ocde-na-conjunto-de-paises-do-grupo-g20-taxa-em-12-meses-atingiu-79-em-marco-contra-113-no-brasil-veja-ranking/>). Explica-se a inflação atual pela desorganização da produção mundial provocada pela pandemia do novo coronavirus e pelas sanções econômicas ocidentais contra a Rússia pela guerra na Ucrânia das quais resultaram problemas no suprimento para todo o mundo de combustíveis, de alimentos e insumos tanto da Rússia quanto da Ucrânia, grandes fornecedores mundiais.
Antes da guerra, Rússia e Ucrânia eram responsáveis por 30% das exportações globais de trigo. Além disso, ao lado de Belarus, os russos respondiam por 40% das vendas de fertilizantes em todo o mundo. Agora, os preços dos grãos, do milho e fertilizantes estão subindo. O preço do trigo no mercado global subiu quase 60%. Na África e no Oriente Médio os suprimentos estão acabando. A diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva considerou que a guerra da Rússia contra a Ucrânia está causando transtornos no comércio global, principalmente de energia e grãos, que ameaça causar uma escassez de alimentos na África e no Oriente Médio, enfraquece as perspectivas de crescimento da maioria dos países e provoca alta da inflação perigosa para a economia global (VALOR. Guerra na Ucrânia e inflação são ‘perigo’ para economia global e vão gerar mais fome, diz FMI. Disponível no website <https://valor.globo.com/google/amp/mundo/noticia/2022/04/14/guerra-na-ucrania-e-inflacao-sao-perigo-para-economia-global-e-vao-gerar-mais-fome-diz-fmi.ghtml>). Ela afirma que a inflação cronicamente alta está forçando bancos centrais em todo o mundo a aumentar as taxas de juros, desacelerando o crescimento econômico, o que equivale a um grande revés para a recuperação global. Georgieva afirma que a ameaça de um colapso na cooperação global não pode ser subestimada.
Parte dos distúrbios se deve à guerra da Rússia contra a Ucrânia, mas outra parte se dá por causa das sanções do Ocidente contra a Rússia, que puxaram para cima, sobretudo, os preços do petróleo no mercado internacional. E as sanções econômicas contra a Rússia não devem acabar com a guerra. O efeito principal é a inflação. A escassez de combustíveis, de alimentos e insumos em todo o mundo contribuiu para a insuficiência na oferta destes produtos dela resultando a subida vertiginosa de seus preços no mercado internacional impactando sobre a economia de todos os países do mundo. Trata-se, portanto, de um problema de inflação de demanda que para ser solucionada precisaria haver o planejamento global e coordenado do aumento da produção dos produtos escassos em todos os países produtores para forçar a baixa dos seus preços. Esta é que seria a solução que impediria o colapso da globalização econômica e financeira contemporânea. No entanto, ela só seria possível se existisse uma entidade que exercesse a governança mundial para coordenar a ação dos países produtores visando o aumento da produção dos produtos escassos. Esta entidade não existe no planeta e não seria implantada porque seria incompatível com o modelo neoliberal imperante em toda a economia mundial cujos ideólogos não admitem a intervenção governamental na economia. Diante deste fato, a inflação de demanda dos produtos escassos deverá persistir alimentando, também, a inflação dos custos de produção dos demais produtos.
A Inflação dos custos de produção dos produtos em geral está ocorrendo simultaneamente com a inflação de demanda dos produtos escassos. Esta inflação ocorre quando há aumento nos custos de produção (maquinário, matéria-prima, insumos, mão-de-obra e impostos) dos demais produtos. A Inflação dos custos de produção pode ser gerada pelo aumento de qualquer um dos custos de produção como: salários, maquinário, matérias-primas, insumos ou impostos. Com o aumento dos custos de produção, a reação dos produtores consiste em aumentar o preço dos produtos e serviços que fica mais elevado para o consumidor final. Portanto, nessas circunstâncias, a economia mundial se depara, também, com uma inflação de custos de produção. Qual seria a forma racional de eliminar a inflação de custos de produção no mundo? Para eliminar a inflação de custos de produção, os governos de todos os países do mundo deveriam adotar medidas para incentivar o aumento da produtividade para evitar o aumento dos preços dos salários, matérias-primas e insumos e reduzir os impostos incidentes sobre os produtos. Este tipo de iniciativa seria incompatível com o modelo neoliberal imperante em toda a economia mundial que não admite a intervenção governamental na economia. Ao invés de adotar essas medidas, os governos atuam para aumentar as taxas de juros que, além de não baixar efetivamente a inflação, contribui para levar suas economias à recessão. A recessão mundial será a consequência natural do aumento das taxas de juros adotado por todos os países do mundo. Inflação global e recessão global farão com que o mundo se defronte com a estagflação global levará muitos governos nacionais a abandonarem a globalização neoliberal.
O secretário-geral da ONU, António Guterres afirmou que a guerra entre Rússia e Ucrânia exacerba uma série de problemas para a economia global. A inflação está subindo, o poder de compra está erodindo, os prospectos de crescimento estão enfraquecendo e o desenvolvimento está se estagnando. Guterres acrescentou que muitos países em desenvolvimento estão “afundando em dívidas”, em meio à escalada dos juros de títulos soberanos. Isso está causando um potencial ciclo vicioso de inflação e estagnação, a chamada estagflação (CNN BRASIL. Guerra na Ucrânia exacerba desafios da economia global, como inflação, diz ONU. Disponível no website <https://www.cnnbrasil.com.br/business/guerra-na-ucrania-exacerba-desafios-da-economia-global-como-inflacao-diz-onu/?amp>).
Os sinais do colapso da globalização econômica e financeira já estavam se apresentando a partir de 2010 quando a relação entre as exportações mundiais e o PIB mundial caiu cerca de 12%, um declínio não visto desde a década de 1970. Na Figura 1, pode-se observar que a globalização evoluiu de 1870 a 1914, decaiu entre 1914 e 1945 (entre guerras mundiais) e retomou 1945 a 2008. A partir de 2008, a globalização passou a apresentar declínio com a queda na relação entre as exportações mundiais e o PIB mundial. A inflação com recessão mundial atual deverá agravar ainda mais a queda no processo de globalização.
Figura 1- Razão entre exportações totais e o PIB mundial entre 1870 e 2007

Fonte: https://aterraeredonda.com.br/acabou-o-impulso-de-globalizacao/
Michael Roberts, economist, co-editor, entre outros livros, de “The Great Recession: a Marxist View”, “The Long Depression” e “Marx 200: a Review of Marx’s Economics 200 years after his Birth” e autor do blog “The Next Recession” (https://thenextrecession.wordpress.com), afirma em seu artigo Acabou o impulso de globalização?, disponível no website <https://aterraeredonda.com.br/acabou-o-impulso-de-globalizacao/>, que a última onda de globalização começou a diminuir pouco antes do início dos anos 2000, quando a lucratividade global passou a recuar, tal como mostra a Figura 2 abaixo para a taxa de lucro médio dos países do G20 que é composto pelos países da União Europeia, além dos seguintes países: Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Indonésia, Itália, Japão, República da Coreia, México, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos
Figura 2- Taxa de lucro média dos países do G20 (%)

Fonte: https://aterraeredonda.com.br/acabou-o-impulso-de-globalizacao/
O fim da globalização econômica e financeira representada pela relação entre as exportações mundiais e o PIB mundial poderá ocorrer, não apenas devido à estagflação mundial, mas também em consequência da queda na relação da taxa de lucratividade global conforme mostra a Figura 2. Cabe observar que globalização significou a partir de 1980 a quebra de barreiras tarifárias, cotas e outras restrições comerciais, permitindo assim que as multinacionais operassem livremente e transferissem os seus investimentos para áreas de mão de obra barata com a finalidade de aumentar a lucratividade. O pressuposto foi o de que isso levaria à expansão global e ao desenvolvimento harmonioso das forças produtivas e ao crescimento dos recursos do mundo que, de fato, não aconteceu. Na década de 1990, o comércio mundial cresceu 6,2% ao ano, o investimento direto estrangeiro (IDE) aumentou 15,3% ao ano e o PIB global se elevou em 3,8% ao ano. Mas, na longa depressão da década de 2010, o comércio cresceu apenas 2,7% ao ano, mais lento do que o PIB em 3,1%, enquanto o IDE aumentou apenas 0,8% ao ano. O resultado da globalização tem sido a destruição de todas as antigas indústrias nacionais estabelecidas e, no lugar da antiga autossuficiência local e nacional se estabeleceu a interdependência entre as nações. A interdependência entre as nações que era um dos pontos fortes da globalização se constitui agora no seu contrário ao contribuir para a disseminação da inflação em todos os países do planeta.
Pode-se afirmar que a globalização econômica e financeira e o livre comércio não trouxeram ganhos para todas as empresas e todos os países e suas populações. Sob a livre circulação de capitais pertencentes às transnacionais, assim como sob o livre comércio sem tarifas e restrições, os grandes capitais mais eficientes triunfaram às custas dos mais fracos e ineficientes. Em consequência, os trabalhadores desses últimos setores foram também atingidos. As corporações transnacionais transferiram suas atividades para áreas em que a mão de obra era mais barata e adotaram novas tecnologias que exigem menos mão de obra na luta pela lucratividade. Em vez de um desenvolvimento harmonioso e igualitário, a globalização aumentou a desigualdade de riqueza e renda, tanto entre as nações quanto dentro delas. Com o colapso da globalização, é pouco provável que o capitalismo ganhe um novo sopro de vida baseado em lucratividade crescente e sustentada. É improvável que o capitalismo retome a lucratividade do passado diante da perspectiva de aprofundamento da crise atual e talvez de mais guerras no futuro. É inevitável o colapso da globalização econômica e financeira. Isto significa dizer que cada país do mundo deve promover seu desenvolvimento voltado para seu mercado interno com a adoção de políticas econômicas nacional desenvolvimentistas para não sofrer o mesmo colapso que terá a globalização econômica e financeira.
* Fernando Alcoforado, 82, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019) e A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021).