Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo apresentar como promover o fortalecimento da democracia para evitar a implantação de ditaduras no Brasil no presente e no futuro. A democracia precisa ser fortalecida no Brasil diante das ameaças concretas à sua existência oriundas de forças políticas de extrema-direita. O fracasso da democracia representativa como é praticada no Brasil está contribuindo, não apenas para o agravamento dos problemas econômicos e sociais do País, mas também, para o agravamento dos problemas políticos ao abrir caminho para o seu próprio fim se constituindo em terreno fértil para o advento de regimes de exceção diante da frustração da maioria da população brasileira que percebe a cada dia que participa de um engodo ao eleger falsos representantes. Esta insatisfação com a democracia representativa já se manifesta em cada eleição no crescimento dos protestos nas redes sociais. Tudo isto explica o fato de ter havido no Brasil desde 2013 grande mobilização social, que começou com uma onda de protestos em São Paulo e se espalhou por várias cidades brasileiras, mobilizando milhares de pessoas para lutar pela construção de uma nova ordem política, econômica e social em substituição à ordem política, econômica e social vigente baseada na Constituição de 1988. Foi assim que surgiram grupos políticos de extrema-direita neofascistas que buscam a purificação da sociedade brasileira com a implantação de uma ditadura para livrar o Brasil das influências tóxicas de partidos e lideranças políticas de esquerda e seus aliados os quais são por eles considerados culpados pela situação em que vive a nação brasileira.
O Brasil é regido pela Constituição da República Federativa promulgada no dia 5 de outubro de 1988. Este documento marcou o fim da ditadura civil e militar e o surgimento da democracia no Brasil que perdura há 34 anos. O processo de redemocratização no Brasil foi iniciado com a luta pela Anistia em 1979. O texto constitucional começou a ser escrito em uma Assembleia Constituinte, em 1987, formada por oito comissões e 24 subcomissões temáticas. A Constituição de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1988 estabelece em seus princípios fundamentais, em seu Artigo 1º, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Em seu parágrafo único informa que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Do Artigo 1º, o respeito à dignidade da população brasileira e aos valores sociais do trabalho ainda não foram colocados em prática no Brasil porque a grande maioria da população brasileira continua ainda marginalizada diante do gigantesco desemprego e do trabalho informal existente no País.
A Constituição de 1988 estabelece em seu Artigo 2º que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Na atualidade, o Poder Executivo não contribui para a harmonia entre os Poderes da União. O Artigo 3º informa que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O Artigo 3º ainda não foi colocado em prática no Brasil. O Artigo 4º estabelece que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e, X – concessão de asilo político. Em seu Parágrafo Único, estabelece que a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. O Parágrafo Único do Artigo 4º não vem sendo cumprido no atual governo.
Com mais de 70 Emendas Constitucionais, o documento foi modificado ao longo dos 25 anos acompanhando as mudanças da sociedade. Por melhor que seja a lei, ela não pode ser eterna. Com a exceção das Cláusulas Pétreas, as normas precisam acompanhar as mudanças. Apesar da possibilidade de ser modificada, a Carta Constitucional também traz parágrafos que não podem ser mudados, como os do Artigo 5º que estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Entre os pontos presentes nas Cláusulas Pétreas, está a igualdade entre homens e mulheres perante as leis. Entretanto, o Artigo 5º não vem sendo cumprido na prática porque nem todos os brasileiros são iguais perante a lei e ainda não há igualdade de gênero no Brasil. Desde sua promulgação, a sociedade brasileira participou da Constituição de 1988, um direito previsto na lei. Durante 34 anos, o envolvimento popular foi visto em manifestações e em elaboração de normas. Por exemplo, a Lei da Ficha Limpa promulgada em 2010 foi criada por iniciativa dos cidadãos brasileiros. Teve o objetivo de impedir que políticos investigados no segundo grau de jurisdição, no Tribunal de Justiça, conseguissem ser aceitos para concorrer a cargos públicos.
Apesar de não ter sido colocada em prática em sua totalidade, a Constituição da República Federativa do Brasil tornou-se o principal símbolo do processo de redemocratização nacional, depois de mais de duas décadas de ditadura civil e militar. Ela se contrapôs diretamente à Constituinte anterior, de 1967, considerada a mais autoritária das constituições brasileiras, que entre suas medidas, estabelecia a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, a censura da imprensa e o poder absoluto para o Presidente da República fechar o Congresso Nacional. Assim, a Constituição de 1988 buscava retomar o caminho da democracia e a recuperação dos direitos dos cidadãos. A ditadura civil e militar deixou como sua marca indelével a violação dos direitos civis. A Constituinte de 1988 operou, de fato, como mobilizadora e catalizadora da definição de pautas em prol dos direitos humanos e significou a reconquista da cidadania e da democracia. E a participação da população foi alta porque 15 milhões de brasileiros assinaram mais de 50 emendas ao texto básico. Foi a primeira vez que emendas populares foram permitidas em uma constituinte brasileira e que se realizaram audiências e consultas públicas no Congresso Nacional. Ao todo, mais de 80 mil emendas populares foram propostas.
Após a promulgação da nova Constituição em 1988, houve, portanto, um novo arranjo político: o pacto democrático de 1988. Sustentado ao mesmo tempo pela nova Constituição e pelo presidencialismo de coalizão, uma forma de governo baseada na formação de grandes coalizões parlamentares, o pacto democrático de 1988 se baseia no entendimento de que a implementação das mudanças sociais anunciadas na Constituição ocorreriam de forma gradual. De 1988 até o momento atual, houve avanços democráticos no Brasil como um verdadeiro choque de progresso. Em 2011 foi criada, por exemplo, a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil e militar, e, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva. No ano seguinte, o mesmo tribunal reconheceu o direito ao aborto em casos de anencefalia fetal e confirmou a validade do sistema de cotas raciais nas universidades públicas. Em 2013 foi promulgada a PEC das Domésticas, que ampliou os direitos trabalhistas das trabalhadoras e trabalhadores domésticos, e em 2014 a “Lei da Palmada”, que proíbe o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis e degradantes a crianças e adolescentes. Apesar dessas políticas terem representado avanços democráticos inegáveis no Brasil, isto não implicou, automaticamente, na diminuição de relações de opressão em nossa sociedade. A conquista das cotas raciais ocorreu em paralelo à continuidade do assassinato de negros, a criação da Lei Maria da Penha não impediu o aumento de feminicídios, o reconhecimento de direitos a terras indígenas e quilombolas conviveu com a perseguição e violência intensa dirigida a estes grupos, assim como o direito à união civil entre pessoas do mesmo sexo continua a conviver com altos índices de violência contra a comunidade LGBTQIA+.
A palavra democracia, de origem grega, significa, pela etimologia, demos – povo e kratein – governar. Foi o historiador Heródoto quem utilizou o termo democracia pela primeira vez no século V antes de Cristo. Na Grécia antiga havia a democracia direta em que os próprios cidadãos tomavam as decisões políticas nas cidades-estados gregas. O modelo de democracia dos gregos foi denominado de democracia pura, pois consistia em uma sociedade, com um número pequeno de cidadãos, que se reunia e administrava o governo de forma direta. Devido à complexidade da sociedade moderna, tornou-se uma exigência outra forma de organização política, a da democracia indireta, também chamada de democracia representativa que significa as pessoas serem eleitas, por votação, para “representar” um povo, uma população, determinado grupo, comunidade etc. Democracia só pode ser governo do povo e de todos nós, pois o povo é realmente quem deveria reger o governo, embora faça indiretamente por meio de representantes escolhidos através do voto. Esta é a essência da democracia representativa. A primeira condição para a democracia existir é a eleição popular, a escolha dos governantes e de seus representantes pelo povo. Não basta, porém, a realização de eleição para caracterizar a democracia.
A democracia não se esgota, portanto, na eleição dos representantes do povo. É preciso que os governantes, depois de eleitos, procedam sempre de acordo com as aspirações e interesses do povo que os elegeu. Durante seus mandatos, os eleitos deveriam agir sempre em consonância com a opinião pública. Não pode haver democracia em oposição à opinião pública. Quando não há essa consonância, o povo não governa, embora eleja os seus governantes. A democracia representativa no Brasil manifesta sinais claros de esgotamento ao desestimular a participação popular, reduzindo a atividade política a processos eleitorais que se repetem periodicamente em que o povo elege seus representantes os quais, com poucas exceções, após as eleições passam a defender interesses de grupos econômicos em contraposição aos interesses daqueles que os elegeram. O que é prometido em campanha eleitoral é, com raras exceções, abandonado pelos dirigentes do poder executivo e pelos parlamentares após ocuparem seus cargos eletivos. A partir deste momento passam a prevalecer os interesses dos próprios governantes eleitos e dos finaciadores de suas campanhas eleitorais que nem sempre correspondem aos interesses da grande maioria dos eleitores.
Na prática, tudo funciona como em cada eleição o povo oferecesse a cada dirigente do Poder Executivo e a cada parlamentar um cheque em branco para fazerem o que quiserem após ocuparem seus cargos eletivos. O que se constata, de fato, é a existência no Poder Executivo e no Parlamento de um grupo de eleitos sem controle social e cada vez mais distantes das reivindicações dos cidadãos. Tudo isto explica porque várias cláusulas expressas na Constituição de 1988 não tenham sido cumpridas. A ausência de controle social dos eleitos e seu descompromisso com a Constituição e as promessas de campanha só tendem a reforçar a idéia da inexistência de diferenças substanciais entre os partidos políticos em que muitos deles se transformaram em meros cartórios eleitorais e a aumentar a frustração com a democracia representativa e as instituições políticas no Brasil. Para fazer avançar a democracia no Brasil e aperfeiçoar a democracia representativa, torna-se indispensável a institucionalização da democracia participativa com o povo deliberando em última instância sobre planos e orçamentos de governo em todos os níveis (federal, estadual e municipal) através de plebiscito e de referendo, como já acontece em vários países europeus, particularmente na Escandinávia, considerada atualmente o modelo ideal do exercício do poder político pautado no debate público entre governantes e cidadãos livres em condições iguais de participação. A democracia participativa significa os cidadãos se tornarem parte, se sentirem incluídos e exercerem o direito à cidadania (ter vez, voz e voto). A participação dos cidadãos não pode ser entendida como dádiva ou concessão e sim como um direito.
As instituições políticas existentes no Brasil desde 1988 são uma conquista democrática do povo brasileiro frente às trevas da ditadura civil e militar que durou de 1964 a 1985, mas de forma alguma são expressão de uma verdadeira democracia que só poderá ser alcançada com a democracia participativa. A democracia participativa seria a forma de evitar que planos e orçamentos de governo sejam impostos à população atendendo à vontade exclusiva dos governantes e dos grupos econômicos como ocorre na democracia representativa praticada atualmente no Brasil. O insucesso da democracia representativa foi um dos fatores que contribuiu para que setores políticos de extrema-direita passassem a negar a democracia pugnando pela implantação de uma ditadura como solução para obter dias melhores, sem corrupção em todas as esferas do governo, sem uma justiça elitista que decida em benefício próprio (como vimos recentemente com a decisão do STF de aumentar os salários dos seus ministros) e sem um Parlamento que protege interesses escusos através de orçamentos secretos e leis que garantem os interesses dos de cima e castigam os de baixo. A constatação de que grupos de extrema-direita neofascistas ameaçam a democracia obriga atualmente a todos os democratas do Brasil a somarem esforços para impedir a tentativa de golpe de estado em curso e pugne por uma proposta de um sistema democrático radicalmente diferente do atual que somos obrigados a defender para impedir o retrocesso político-institucional. Para a democracia no Brasil ser fortalecida, é preciso, portanto, institucionalizar em nossa Constituição a democracia participativa como condição sine-qua-non para barrar as tentativas de grupos políticos de extrema-direita neofascistas de destruírem as conquistas democráticas alcançadas com a Constituição de 1988 e implantar uma ditadura no País no presente e no futuro.
* Fernando Alcoforado, 82, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019) e A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021).