Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo apresentar como superar as desigualdades de renda e de riqueza entre as populações e entre as nações no mundo. A análise das desigualdades de renda e de riqueza no mundo tomou por base o Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022 produzido pela equipe de Thomas Piketty da Escola de Economia de Paris. Este relatório apresenta os esforços de pesquisa internacional para rastrear as desigualdades globais. Os dados de 2021 e análises aqui apresentados baseiam-se no trabalho de mais de 100 pesquisadores localizados em todos os continentes, ao longo de quatro anos.
Este relatório, que teve sua síntese publicada no website <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/novo-mapa-da-desigualdade-global/>, informa que os 10% mais ricos da população global respondem atualmente por 52% da renda global, enquanto a metade mais pobre da população ganha 8% da renda mundial. Em média, um indivíduo entre os 10% mais ricos da distribuição de renda global ganha US$ 122.100 por ano, enquanto um indivíduo da metade mais pobre da distribuição de renda global ganha US$ 3.920 por ano.
O mapa mundial da desigualdade social (Figura 1) revela que, entre os países de alta renda, alguns são muito desiguais como os Estados Unidos, enquanto outros são relativamente igualitários, como, por exemplo, a Suécia. O mesmo vale para países de renda baixa e média, com alguns exibindo desigualdade extrema como, por exemplo, Brasil e Índia, níveis um tanto elevados como a China e níveis moderados a relativamente baixos, como, por exemplo, Malásia e Uruguai. No Brasil, os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos. Este valor é 7 vezes menor na França.
FIGURA 1 – Mapa mundial da desigualdade social

Fonte: OUTRAS PALAVRAS. O novo mapa da desigualdade global. Disponível no website <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/novo-mapa-da-desigualdade-global/>. Observação: Os países em cor vermelha são os que apresentam maior desigualdade social e os que apresentam cor amarela são os países com menor desigualdade social. Os países nas demais cores apresentam desigualdade social intermediária. Quanto mais tendendo para o vermelho, maior é a desigualdade social.
As desigualdades de riqueza global são ainda mais pronunciadas do que as desigualdades de renda da população global. A metade mais pobre da população global mal possui alguma riqueza, tem apenas 2% do total da riqueza mundial. Em contraste, os 10% mais ricos da população mundial possuem 76% de toda a riqueza do planeta. Na Europa, a riqueza dos 10% mais ricos é de cerca de 36% da riqueza total da região, enquanto no Oriente Médio e no norte da África este valor chega a 58% da riqueza total da região. Entre esses dois níveis, há uma diversidade de padrões. No Leste Asiático, os 10% mais ricos possuem 43% da riqueza total da região e na América Latina, 55% da riqueza total da região.
As desigualdades de riqueza aumentaram entre os mais ricos. O aumento da riqueza privada também foi desigual dentro dos países e em nível mundial. Os multimilionários globais auferiram uma parcela desproporcional do crescimento da riqueza global nas últimas décadas. O 1% do topo da riqueza global ficou com 38% de toda a riqueza adicional acumulada desde meados da década de 1990, enquanto os 50% da base ficou com apenas 2% da riqueza global. A riqueza dos indivíduos mais ricos do planeta cresceu de 6% a 9% ao ano desde 1995, enquanto a riqueza média cresceu 3,2% ao ano. Desde 1995, a parcela da riqueza global em mãos de bilionários aumentou de 1% para mais de 3%. Este aumento foi exacerbado durante a pandemia do novo Coronavírus. A parcela da riqueza detida pelos bilionários do mundo aumentou de 1% da riqueza total das famílias em 1995 para quase 3,5% hoje. Na verdade, 2020 marcou o aumento mais acentuado na participação dos bilionários globais na riqueza mundial já registrado no mundo (Figura 2).
FIGURA 2 – Desigualdade extrema de riqueza: o aumento dos bilionários globais, 1995-2021

Fonte: OUTRAS PALAVRAS. O novo mapa da desigualdade global. Disponível no website <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/novo-mapa-da-desigualdade-global/>.
Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022 informa que o Oriente Médio e o norte da África são as regiões mais desiguais do mundo em termos de renda e riqueza, enquanto a Europa tem os níveis de desigualdade mais baixos. A desigualdade de renda varia significativamente entre a região mais igualitária (Europa) e a mais desigual (Oriente Médio e Norte da África). As desigualdades globais parecem ser tão grandes hoje quanto no auge do imperialismo ocidental no início do século XX. Na verdade, a parcela da renda atualmente auferida pela metade mais pobre da população mundial é cerca de metade do que era em 1820, antes da grande ruptura entre os países ocidentais e suas colônias.
As nações ficaram mais ricas, mas os governos se tornaram mais pobres. Uma maneira de entender essas desigualdades é observar a lacuna entre a riqueza líquida dos governos e a riqueza líquida do setor privado. Nos últimos 40 anos, os países tornaram-se significativamente mais ricos, mas seus governos tornaram-se significativamente mais pobres. A parcela da riqueza detida pelos atores públicos é próxima de zero ou negativa nos países ricos, o que significa que a totalidade da riqueza está em mãos privadas (Figura 3). Essa tendência foi ampliada pela pandemia do novo Coronavirus, durante a qual os governos se endividaram o equivalente a 10-20% do PIB, captando recursos essencialmente do setor privado. Hoje, a pouca riqueza dos governos pode inviabilizar a capacidade do Estado nacional de promover o desenvolvimento de seus países, superar as desigualdades de renda e riqueza no futuro, bem como enfrentar os principais desafios do século XXI, como as mudanças climáticas.
FIGURA 3 – Riqueza do setor privado e do setor público nos países ricos, 1970-2020

Fonte: OUTRAS PALAVRAS. O novo mapa da desigualdade global. Disponível no website <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/novo-mapa-da-desigualdade-global/>.
O Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022 afirma que a desigualdade existente em todos os países do mundo é uma escolha política, não uma inevitabilidade. As desigualdades de renda e de riqueza aumentaram em quase todo o mundo desde a década de 1980, após uma série de programas neoliberais de desregulamentação e liberalização que assumiram diferentes formas em diferentes países. O aumento não foi uniforme. Alguns países experimentaram aumentos espetaculares na desigualdade (incluindo os Estados Unidos, Rússia e Índia), enquanto outros (países europeus e China) experimentaram aumentos relativamente menores.
O Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022 afirma que enfrentar os desafios do século XXI não é possível sem uma redução significativa das desigualdades de renda e riqueza. Além disso, argumenta que a ascensão dos Estados de Bem-Estar Social modernos no século XX, que foi associada a um grande progresso na saúde, educação e oportunidades para todos, estava associada ao forte aumento de impostos progressivos e que isto desempenhou um papel fundamental para garantir a aceitação social e política do aumento da tributação e da socialização da riqueza, como é o caso dos países escandinavos. O Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022 defende a tese de que uma evolução semelhante será necessária para enfrentar os desafios do século XXI. O progresso em direção a políticas econômicas mais justas é de fato possível, tanto em nível global como também dentro dos países.
Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital in the Twenty-First Century (Capital no século XXI) publicado pela The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2014, no qual defende a taxação progressiva e a tributação da riqueza global como único caminho para deter a tendência de uma desigualdade crescente de riqueza e renda no sistema capitalista. Ele coloca em xeque a visão, amplamente aceita, de que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza. O que Piketty mostra estatisticamente é que o capital tendeu, através da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Esta é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro volume de sua versão de O Capital ((Boitempo Editorial, São Paulo, 2013). Em O Capital de Marx, a desigualdade é vista como resultado inevitável da produção da riqueza sob o capitalismo com a exploração dos trabalhadores e não como o resultado da distribuição da riqueza como O Capital no Século XXI de Piketty apresenta.
Piketty explica que ocorre uma tendência no crescimento da desigualdade devido ao contínuo aumento da acumulação de riqueza resultante do fato de que a taxa de retorno sobre o capital sempre excede a taxa de crescimento da renda. Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital. Por sua vez, Marx afirma em sua obra que a desigualdade social resulta do desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda é válida hoje. A queda constante da participação do trabalho na renda nacional com a globalização neoliberal contemporânea, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político dos trabalhadores à medida que o capital aumenta a exploração dos trabalhadores com o aumento do desemprego resultante da automação da produção e da deslocalização de empresas para países mais lucrativos e da adoção de políticas contra os trabalhadores para destruir qualquer oposição.
A solução proposta por Karl Marx é de superação das desigualdades com o fim do capitalismo e a implantação do socialismo e, mais tarde, do comunismo que é considerada utópica por muitos analistas haja vista o fracasso do socialismo real implantado na União Soviética e em outros países. Por sua vez, a solução proposta por Piketty é para consertar o sistema capitalista e mantê-lo funcionando que é, também, considerada utópica diante do poder do capital porque ele sugere, entre outras medidas, a tributação de grandes fortunas e o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Em suma, ambas as soluções propostas seriam, portanto, utópicas para muitos analistas. Outra solução seria a adoção da política de transferência de renda pelos governos para as populações carentes de renda que seria inviável porque a maioria dos governos não teria recursos suficientes para financiar esta política.
Entretanto, Eric Hobsbawn ofereceu uma resposta para este dilema em artigo publicado no jornal britânico The Guardian em 16/04/2009, sob o título Theoretical assumptions of the “mixed economy” (Pressupostos teóricos da “economia mista”), quando afirmou que conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos os sistemas, socialista e neoliberal, em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global desde a crise de 1929 quando houve a quebra da Bolsa de Nova Iorque.
Hobsbawm disse que o futuro pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Isto significa dizer que a Social Democracia com o Estado de Bem Estar Social, o mais bem sucedido sistema já implantado no mundo, especialmente nos países escandinavos, que incorpora elementos tanto do socialismo como do capitalismo, poderia ser a solução para o problema da desigualdade que avassala o planeta em que vivemos. Um fato é indiscutível: enquanto prevalecer o capitalismo, as desigualdades de renda e de riqueza aumentarão em todos os países do mundo gerando, em consequência, um ambiente de convulsão social da qual resultarão revoluções sociais e contrarrevoluções que levarão a instabilidades políticas com à implantação de ditaduras pró capitalismo ou anticapitalistas. Para evitar este cenário de conflagração política e social, a solução mais inteligente consiste na adoção da Social Democracia com o Estado de Bem Estar Social nos moldes dos países escandinavos com a necessária adaptação em cada país.
* Fernando Alcoforado, 82, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022) e de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022).