Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo apresentar propostas concretas que contribuam para o fim da barbárie do conflito entre o Estado de Israel e o povo palestino e, também, da barbárie das guerras no mundo. O termo barbárie tem dois significados distintos, mas ligados entre si: falta de civilização e crueldade de bárbaro. Barbárie significa violência desenfreada e o desprezo pelo ser humano. A barbárie tem aumentado permanentemente no mundo. Ano a ano, década a década, a violência e o desprezo pelo ser humano têm aumentado parecendo não haver um limite para este fenômeno. Algo muitíssimo pior: os homens e mulheres se acostumaram com a barbárie já não existindo espanto, estranheza, nem horror frente aos atos desumanos. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial estabeleceram uma nova forma de barbárie eminentemente moderna, bem pior em sua desumanidade assassina do que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. O ano de 1914 começa com os sacrifícios ilimitados no afã de eliminar o inimigo. Sacrifício este que incorpora a própria população civil. 1914 começa com a era da guerra total, a ausência de distinções entre combatentes e não combatentes. Isto é o que está acontecendo, também, no conflito entre o Estado de Israel e os palestinos do Hamas.
Michael Lowy, sociólogo e filósofo franco-brasileiro e diretor de pesquisa em ciências sociais do CNRS- Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, afirma que a barbárie moderna ou “barbárie gerada no seio das sociedades ditas civilizadas” se caracteriza pelo uso de meios técnicos modernos (industrialização do homicídio, extermínio em massa graças às tecnologias científicas de ponta), pela impessoalidade do massacre (populações inteiras – homens e mulheres, crianças e idosos – são “eliminados”, com o menor contato pessoal possível entre quem toma a decisão e as vítimas), pela gestão burocrática, administrativa, eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros e pelo uso de ideologia legitimadora do tipo moderno: biológica, higiênica, científica (LOWY, Michael. Barbárie e modernidade no século 20. Publicado no website <https://www.ecodebate.com.br/2010/05/20/barbarie-e-modernidade-no-seculo-20-artigo-de-michael-lowy/> e, originalmente em francês, na revista “Critique Communiste” nº 157, hiver 2000). Isto é o que está acontecendo, também, no conflito entre o Estado de Israel e os palestinos do Hamas.
O genocídio nazista contra os judeus, ciganos e comunistas, o uso da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, o Goulag stalinista, a guerra do Vietnã, o ataque terrorista ao World Trade Center em New York, as duas guerras do Iraque, a guerra do Afeganistão, as guerras civis da Líbia e da Síria, e agora a selvageria do ataque em 7 de outubro passado do Hamas contra civis israelenses e o insano massacre israelense da população civil da Faixa de Gaza exemplificam de maneira mais acabada a barbárie que caracteriza o mundo em que vivemos. A violência dos conflitos em nossa época não tem paralelo na história. As guerras do século XX e, também, as do século XXI foram e são “guerras totais” contra combatentes e civis sem discriminação. No momento atual, os governantes israelenses bombardeiam indiscriminadamente a Faixa de Gaza matando milhares de civis palestinos inocentes em desobediência às leis internacionais na tentativa de atingir os palestinos do Hamas responsáveis pela chacina contra civis israelenses em 7 de outubro passado.
É inaceitável viver em um mundo em que, nos últimos 6.000 anos da história da humanidade, houve apenas 292 anos de relativa paz entre os povos. É lamentável a situação a que chegou a humanidade com a prevalência da barbárie sobre os valores da civilização. É preciso observar que a antítese da Barbárie é a Civilização que é considerada o estágio mais avançado que uma sociedade humana pode alcançar. Para uma sociedade mundial ser considerada civilizada, é preciso que ela: 1) promova a satisfação do bem estar social da população em cada país e globalmente; 2) assegure a paz entre os povos com a solução pacífica dos conflitos internacionais; 3) preserve a natureza e/ou promova a mitigação dos efeitos da atuação dos seres humanos sobre ela; 4) ofereça segurança garantida para todos os cidadãos que não devem temer a perda de suas vidas ou ter danos físicos; 5) garanta assistência médica da melhor qualidade possível para todos os membros da sociedade; 6) conceda acesso à comida e água para todos os cidadãos de modo que nenhuma pessoa passe fome ou sede; 7) ofereça as condições básicas de habitação para todos os cidadãos; 8) possua um sistema legislativo democrático cujas leis sejam estabelecidas para preservar o bem-estar da população; 9) possua um sistema educacional que garanta igualdade de acesso à educação de alto nível para todas as pessoas visando tornar sua população altamente educada; e, 10) assegure para a população a liberdade de pensamento, crença, religião, afiliação e expressão e o direito de participar das decisões de governo.
Diante do histórico tenebroso dos atentados praticados contra a humanidade e de suas perspectivas sombrias, urge atacar o mal da barbárie pela raiz com a construção de uma nova ordem mundial civilizada em substituição à ordem capitalista dominante geradora dos atentados à Civilização em todos os quadrantes da Terra que se registram há mais de 500 anos. Para que a Civilização s imponha contra a Barbárie, é preciso que seja construído um novo sistema internacional porque o sistema atual é incapaz de assegurar a paz mundial e mediar os conflitos internacionais para evitar o fim da humanidade com a eclosão de uma nova guerra mundial de consequências devastadoras. Está cada vez mais evidenciado que o sistema internacional atual com a inoperância da ONU não tem capacidade de mediar os conflitos internacionais. Está cada vez mais evidenciada a necessidade de um novo sistema internacional composto por um Governo democrático mundial, um Parlamento mundial e uma Corte Suprema mundial a serem construídos com a reestruturação da ONU.
É chegada a hora da humanidade solucionar, não apenas os conflitos internacionais atuais como entre o Estado de Israel e o Hamas, mas também no mundo, nos marcos da Civilização. No caso do conflito entre o Estado de Israel e o Hamas, ele só chegará ao fim, se, de imediato, houver um cessar fogo entre Israel e o Hamas, a troca dos reféns em poder do Hamas por prisioneiros palestinos nas prisões israelenses e a criação de um corredor humanitário na Faixa de Gaza para evitar a morte de palestinos de sede e de fome. Para que este acordo de paz se torne duradouro, é preciso que, de um lado, as fronteiras entre Israel e Palestina pré-1967 sejam respeitadas, Jerusalém seja transformada em uma cidade internacional sob o controle das Nações Unidas haja vista que há um profundo desacordo entre palestinos e israelenses sobre sua divisão, a imediata retirada dos colonos israelenses de terras palestinas da Cisjordânia, o retorno de refugiados das guerras árabe-israelenses a suas antigas terras e o reconhecimento da Palestina como Estado independente e, de outro, os palestinos reconhecerem o Estado de Israel porque nem palestinos nem israelenses podem impor sua vontade um ao outro. A construção da paz só poderá acontecer entre o Estado de Israel e os palestinos se o povo judeu em Israel e no mundo inteiro, bem como os palestinos repelirem politicamente os extremistas que exercem o poder em seus territórios e constituírem governos que busquem a conciliação entre os povos judeu e palestino. Esta seria a forma de evitar a continuidade do conflito entre o Estado de Israel e o povo palestino que poderá evoluir para uma guerra regional envolvendo todos os países da região.
A passagem de uma guerra regional para um conflito global pode também acontecer com o envolvimento das grandes potências militares com os Estados Unidos e a União Europeia ao lado de Israel e Rússia e China ao lado dos palestinos. Precisamos evitar que o conflito entre o Estado de Israel e o povo palestino se transforme no epicentro de uma nova Guerra Mundial. Só a paz entre palestinos e judeus, evitará o pior para seus povos e para a humanidade. Para afastar definitivamente novos riscos de uma nova guerra mundial e que a se concretize a paz perpétua em nosso planeta, seria preciso a reforma do sistema internacional atual que é incapaz de garantir a paz mundial. O novo sistema internacional deveria funcionar com base em um Contrato Social Planetário. O Contrato Social Planetário seria a Constituição ou Lei Maior do planeta Terra. Para a elaboração do Contrato Social Planetário deveria haver a convocação de uma Assembleia Mundial Constituinte com a participação de representantes de todos os países do mundo eleitos para este fim. O Contrato Social Planetário deveria estabelecer a existência de um Governo mundial cujo presidente deveria ser eleito com mais de 50% de votos do Parlamento mundial a ser, também, constituído democraticamente.
Para assegurar a prática democrática e a governabilidade no planeta Terra, o poder mundial deveria ser exercido pelo Parlamento mundial que, além de eleger o Presidente do Governo mundial, deveria elaborar e aprovar as leis internacionais baseadas no Contrato Social Planetário. O Parlamento mundial deveria ser composto por um número determinado e igual de representantes de cada país eleitos democraticamente para este fim. O Presidente do Governo mundial só exercerá o comando do governo mundial enquanto contar com o apoio da maioria do parlamento O Governo mundial deve contar com uma estrutura organizacional que seja capaz de lidar com as relações internacionais, a questão militar, a economia global, o meio ambiente global, a educação, a saúde, a infraestutura, a ciência e tecnologia, entre outras, para dialogar com o Parlamento mundial e os países integrantes do sistema internacional.
Os parlamentares deveriam eleger a mesa diretora do Parlamento mundial que contaria com estrutura organizacional apropriada. A Corte Suprema Mundial deveria ser composta por juristas de alto nivel do mundo escolhido pelo Parlamento mundial que atuariam por tempo determinado os quais deveriam eleger o Presidente da Corte para cumprir um mandato por tempo determinado. A Corte Suprema Mundial deveria julgar os casos que envolvam litigios entre paises, os crimes contra a humanidade e contra a natureza praticados por Estados nacionais e por governantes à luz do Contrato Social Planetário, julgar conflitos que existam entre o governo mundial e o partamento mundial e atuar como guardiã do Contrato Social Planetário. O Governo mundial não terá Forças Armadas próprias devendo contar com o respaldo de Forças Armadas dos países que seriam convocados quando necessário.
Portanto, com esta sistemática, o parlamento mundial legislaria com sucesso por meio de um processo democrático. Não haveria a necessidade de um ente que atuaria como policial do mundo porque quem exerceria o poder seria o Presidente do governo mundial que usaria as Forças Armadas de determinados países que seriam convocadas quando necessário. O novo estado de direito internacional seria exercido pelos três poderes constituidos: Governo mundial, Parlamento mundial e Corte Suprema mundial. O poder mundial repousaria no Governo mundial, no Parlamento mundial e na Corte Suprema mundial. O poder mundial não corromperia nem seria corrompido porque haveria a vigilância de todos os poderes constituídos. Governo mundial, Parlamento mundial e Corte Suprema mundial atuariam como freios e contrapesos visando a eficiência e eficácia do sistema internacional.
O governo mundial atuaria apenas para fazer com que o sistema internacional evolua em um ambiente de paz entre as nações. Cada país deve ser soberano para atuar nos limites de seu território e não para intervir nos assuntos internos de outros países. O que não seria admitido é qualquer país intervir com o uso da força nos assuntos internos de outros países como tem acontecido ao longo da história. O governo mundial seria a garantia do respeito à soberania dos países do mundo, especialmente dos mais fracos. A ausência de um governo mundial é que representaria uma ameaça à soberania nacional da maioria dos países porque ficariam à mercê dos mais fortes como tem ocorrido ao longo da história. Se qualquer país comprometer o ambiente de paz entre as nações, intervindo nos assuntos internos de outro país, o governo mundial atuaria para impedir que o agressor consuma seus propósitos através de ação diplomática ou, em caso de insucesso, inclusive com o uso da força. Para tanto, o governo mundial convocaria as forças armadas de determinados países para cumprirem o papel de impedir que qualquer país intervenha em outro fazendo uso da força.
Estas são, portanto, as medidas que deveriam ser adotadas para acabar com as guerras no mundo. É oportuno observar que a governança democrática mundial (Governo mundial, Parlamento mundial e Corte Suprema mundial) a ser implantada representaria o estágio mais avançado de evolução política da humanidade porque, ao longo da história, a humanidade evoluiu da aldeia para formar cidades-estado, de cidades-estado para constituir estados-nação, de estados-nação para constituir blocos econômicos como o NAFTA e o Mercosul ou a união econômica e política de estados como a União Europeia. O próximo passo da humanidade seria, portanto, a constituição de um Governo mundial, um Parlamento mundial e uma Corte Suprema mundial para alcançar seu estágio mais elevado de desenvolvimento com a promoção de uma verdadeira integração econômica, política, social e ambiental ao nível planetário com base em um contrato social planetário aprovado por todos os países do mundo. Só com uma governança democrática mundial seria possível compatibilizar os objetivos de cada país uns com os outros em benefício de toda a humanidade.
Para viabilizar o novo sistema internacional com a implantação de uma governança mundial é preciso que, de início, seja constituído um Fórum Mundial pela Paz e pelo Progresso da Humanidade por organizações da Sociedade Civil e governos de todos os países do mundo amantes da paz. Neste Fórum seriam debatidos e estabelecidos os objetivos e estratégias de um movimento mundial pela constituição do Governo mundial, Parlamento mundial e Corte Suprema Mundial visando sensibilizar a população mundial e os governos nacionais no sentido de tornar realidade um mundo de paz e de progresso para toda a humanidade. Este seria o caminho que tornaria possível transformar a utopia da governança mundial em realidade. Sem a constituição de um governo mundial democrático, o cenário que se descortina para o futuro será o de desordem econômica, politica e social e da guerra de todos contra todos.
* Fernando Alcoforado, 83, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da Academia Baiana de Educação, da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e do IPB- Instituto Politécnico da Bahia, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).