Fernando Alcoforado*
Este artigo tem por objetivo demonstrar a conexão entre o capitalismo e a economia de guerra existente nas grandes potências capitalistas que se materializou ao longo da história a partir da 1ª Revolução Industrial no século XVIII. Na atualidade, está cada vez mais evidente a conexão entre o capitalismo e a economia de guerra praticado pelas grandes potências capitalistas como indispensável para compreendermos os jogos de interesses que influenciam na dinâmica do sistema capitalista mundial. A relação simbiótica entre o modelo econômico capitalista vigente e a guerra fica bastante evidente [1]. A economia de guerra que era adotada apenas em épocas de conflitos armados se tornou permanente. Os grandes beneficiários do atual capitalismo de guerra são, além da indústria bélica, devido ao aumento na demanda por armamentos e por munições, também, o sistema financeiro.
Os altos investimentos na área bélica viabiliza oportunidades para obter lucros elevados pela indústria bélica e pelo sistema financeiro não somente nos períodos de guerra, mas também após cada conflito. As grandes potências atuam na mediação entre o complexo industrial-militar e o capital financeiro. As grandes potências atuam como financiador e consumidor da produção de armamentos. Para tanto, vai buscar no capital rentista privado os vultuosos créditos para serem gastos com armas, o que contribui para o crescimento do capital parasitário e, por conseguinte, para sua valorização. Além disso, a guerra é um inexorável meio para a manutenção e expansão do poder pelas grandes potências. Os conflitos, como as guerras mundiais (1ª e 2ª), a Guerra Fria e os inúmeros conflitos que ocorreram do século XVIII à era contemporânea, encontram-se intrinsecamente ligados à lógica da acumulação de capital para beneficiar a indústria de armamentos e o sistema financeiro.
Em sua obra, Canhões e Capitalismo [2[, Robert Kurz, filósofo dos mais proeminentes da Alemanha já falecido, afirma que a inovação das armas de fogo destruiu as formas de dominação pré-capitalistas selando o destino dos exércitos montados e trajados de armadura do período medieval. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, não podiam mais ser produzidos em pequenas oficinas como as armas brancas ou de arremesso durante a Idade Média. Por isso desenvolveu-se uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes fábricas. Ao mesmo tempo, surgiu uma nova arquitetura militar de defesa, na figura de gigantescos baluartes que deveriam resistir às canhonadas. Chegou-se a uma disputa inovadora entre armas ofensivas e defensivas e a uma corrida armamentista entre os Estados, que persiste até os dias de hoje.
Robert Kurz afirma que as armas de fogo alteraram profundamente a estrutura dos exércitos. Por isso a organização militar da sociedade separou-se da civil. Em lugar dos cidadãos mobilizados caso a caso para as campanhas ou dos senhores locais com as suas famílias armadas surgiram os “exércitos permanentes”, nasceram as “forças armadas” como grupo social específico, e o exército tornou-se um corpo estranho na sociedade. O oficialato transformou-se numa “profissão” moderna. A par dessa nova organização militar e das novas técnicas bélicas, também o contingente dos exércitos cresceu vertiginosamente. A indústria armamentista, a corrida armamentista e a manutenção de exércitos permanentemente organizados, divorciados da sociedade civil e ao mesmo tempo com forte crescimento conduziram necessariamente a uma subversão radical da economia [2].
O grande complexo militar desvinculado da sociedade exigia uma “permanente economia de guerra”. Essa nova economia da morte estendeu-se como uma mortalha sobre as estruturas agrárias das antigas sociedades medievais [2]. A economia da morte se manifesta no fato de o século XX ter sido ao longo da história o século das guerras quando dez milhões de pessoas foram mortas na Primeira Guerra Mundial, cinquenta e cinco milhões na Segunda Guerra Mundial e dois milhões nas guerras da Indochina. Todas as “megamortes” ocorridas desde 1914 chegaram a um total de 187 milhões de mortos até o final do século XX. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo conheceu 160 guerras quando morreram cerca de 7 milhões de soldados e 30 milhões de civis.
Robert Kurz afirma, também, que os armamentos e o exército tinham de ser abastecidos com recursos de envergadura passando a depender da mediação do dinheiro. Produção de mercadorias e economia monetária como elementos básicos do capitalismo ganharam impulso no início da era moderna por meio da economia militar e armamentista. A permanente carência financeira da economia de guerra conduziu, na sociedade civil, ao aumento dos capitalistas usurários e comerciais, dos grandes poupadores e dos financiadores de guerra. Para poder financiar as indústrias de armamentos, os gigantescos exércitos e a guerra, os Estados nacionais tinham de extorquir até o sangue de sua população e isso, em correspondência à matéria, numa forma igualmente nova: no lugar dos antigos impostos em espécie, a tributação monetária. A economia de guerra forçou não apenas de forma direta, mas também indireta, o sistema da economia de mercado [2].
Robert Kurz deixa evidenciado, também, o fato de as democracias do Ocidente serem incapazes de ocultar o fato de serem herdeiras da ditadura militar e armamentista do início da modernidade no século XVIII com a economia monetária total e a economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em nenhuma época da história da humanidade, nenhuma sociedade jamais alocou uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército como se faz na era contemporânea. As próprias conquistas positivas da modernidade foi herdeira das armas de fogo e da produção de armamentos no início da modernidade no século XVIII. O vertiginoso desenvolvimento capitalista das forças produtivas desde a Primeira Revolução Industrial ocorreu, também, de forma destrutiva. O neoliberalismo é um filho temporão dos canhões, como demonstraram o gigantesco armamentismo da “Reaganomics” com a política do governo Reagan dos Estados Unidos que incluia o aumento vertiginoso dos gastos com defesa entre outras medidas e a história dos anos 1990.
A economia de guerra, que é sinônimo da economia da morte manterá o inquietante legado da sociedade moderna fundada na economia de mercado até que o capitalismo-camicase destrua a si próprio [2]. Não há dúvidas que a indústria bélica patrocina as guerras atuais como promoveu outras guerras no passado para ganhar dinheiro. A produção recorde de armamentos, cada vez mais letais e cirúrgicos, necessita ser posta para funcionar na prática. Aqui, o Estado passa a atuar de forma contínua e sistemática na própria dinâmica do sistema, imbricando suas funções políticas e econômicas, tornando-se, portanto, o principal agente com condições de possibilitar o desenvolvimento da indústria bélica através da criação de fluxos de investimentos constantes, os quais têm relação direta com a financeirização do capital. Desta forma, passa a existir uma simbiose entre as grandes potências, o capital financeiro e o complexo industrial-militar. As grandes potências funcionam como um elemento de sustentação, como um financiador e comprador desse complexo industrial-militar, comportando-se como um mediador entre ela e o capital financeiro.
Dos 10 maiores fabricantes de armas do mundo, seis são norte-americanas, sendo cinco delas líder da indústria bélica mundial [3] como mostra o Quadro 1 a seguir:
Quadro 1- As 10 empresas que mais venderam armas em 2020
A Figura 1 apresenta os maiores gastos militares no mundo por país [4]. Os Estados Unidos foi o que apresentou o maior gasto militar do mundo (39% do total) em 2021.
Figura 1- Os maiores gastos militares no mundo por país
A Figura 2 mostra os gastos militares reais dos Estados Unidos como porcentagem do PIB, comparados aos gastos com defesa reconhecidos e aos dados do SIPRI, estreitamente relacionados, de 2007 a 2022 [5]. Durante todo o período, os gastos militares reais (NIPA aumentado) como porcentagem do PIB tiveram uma média de 6,7%. Em 2022, os gastos com defesa dos Estados Unidos corresponderam a 6% do PIB.
Figura 2- Gastos militares dos Estados Unidos como percentagem do PIB
Levando em consideração os dez países com os maiores gastos militares do mundo em 2022, os Estados Unidos com base em seus gastos militares reais conforme mostrado aqui, representam mais de 70% do gasto total mundial que difere dos 39% apresentados na Figura 1 que estariam subestimados [5].
Com 102 guerras em seu “currículo” belicoso, os Estados Unidos são, provavelmente, um dos países mais envolvidos em ações militares do mundo que começou com a anexação de terras do México a seu território e a conquista do canal do Panamá. Não é coincidência que os Estados Unidos sejam um dos países mais beneficiados economicamente com os confrontos armados, já que as maiores exportadoras de armas do mundo são norte-americanas. Para além da venda de munição e armas, os Estados Unidos monetiza, também, com contratos de segurança e treinamento militar, o que faz com que muitos membros do Congresso estadunidense entendam as guerras como uma máquina de gerar emprego internamente e fazer dinheiro. A paz, para os Estados Unidos, poderia lhe custar muito caro. São esses fatos que levam muitos a questionarem a real motivação dos Estados Unidos na defesa da Ucrânia, que há anos vive em estado de tensão com a Rússia e na defesa de Israel que há décadas vive em conflito permanente com os palestinos e os países árabes. No século XXI, a preparação para a guerra tornou-se mais central para o sistema capitalista mundial do que jamais fora antes. Fica evidente que, enquanto houver indústria bélica no mundo, as guerras continuarão a proliferar em todo o planeta. A paz no mundo só acontecerá quando houver a cessação da fabricação de armas no mundo com o fim da indústria bélica e o desarmamento de todos os países.
REFERÊNCIAS
1. MARTINS, Caio, PASSOS, Heitor, INOMATO, Rayana. Capitalismo e Guerra: uma relação simbiótica. Disponível no website <https://internacionaldaamazonia.com/2023/12/05/capitalismo-e-guerra-uma-relacao-simbiotica/>.
2. KURZ, Robert. Canhões e Capitalismo. Disponível no website <https://www.marxists.org/portugues/kurz/1997/03/30.htm>.
3. FERRAZ, Marina. 100 maiores empresas de armas venderam US$ 531 bi em 2020. Disponível no website <https://www.poder360.com.br/internacional/100-maiores-empresas-de-armas-venderam-us-531-bilhoes-em-2020/>.
4. MELLO, Michele. Gasto militar mundial bate recorde e supera US$ 2 trilhões em 2021, aponta relatório. Disponível no website <https://www.brasildefato.com.br/2022/04/25/gasto-militar-mundial-bate-recorde-e-supera-us-2-trilhoes-em-2021-aponta-relatorio>.
5. FOSTER, John Bellamy e CERNADAS, Gisela. Gastos militares dos EUA atingiram US$ 1,5 trilhão em 2022, mais que o dobro do divulgado. Disponível no website <https://www.brasildefato.com.br/2024/02/09/gastos-militares-dos-eua-atingiram-us-1-5-trilhao-em-2022-mais-que-o-dobro-do-divulgado>.
* Fernando Alcoforado, 84, condecorado com a Medalha do Mérito da Engenharia do Sistema CONFEA/CREA, membro da SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, do IPB- Instituto Politécnico da Bahia e da Academia Baiana de Educação, engenheiro pela Escola Politécnica da UFBA e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário (Engenharia, Economia e Administração) e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, foi Assessor do Vice-Presidente de Engenharia e Tecnologia da LIGHT S.A. Electric power distribution company do Rio de Janeiro, Coordenador de Planejamento Estratégico do CEPED- Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Bahia, Subsecretário de Energia do Estado da Bahia, Secretário do Planejamento de Salvador, é autor dos livros Globalização (Editora Nobel, São Paulo, 1997), De Collor a FHC- O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial (Editora Nobel, São Paulo, 1998), Um Projeto para o Brasil (Editora Nobel, São Paulo, 2000), Os condicionantes do desenvolvimento do Estado da Bahia (Tese de doutorado. Universidade de Barcelona,http://www.tesisenred.net/handle/10803/1944, 2003), Globalização e Desenvolvimento (Editora Nobel, São Paulo, 2006), Bahia- Desenvolvimento do Século XVI ao Século XX e Objetivos Estratégicos na Era Contemporânea (EGBA, Salvador, 2008), The Necessary Conditions of the Economic and Social Development- The Case of the State of Bahia (VDM Verlag Dr. Müller Aktiengesellschaft & Co. KG, Saarbrücken, Germany, 2010), Aquecimento Global e Catástrofe Planetária (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2010), Amazônia Sustentável- Para o progresso do Brasil e combate ao aquecimento global (Viena- Editora e Gráfica, Santa Cruz do Rio Pardo, São Paulo, 2011), Os Fatores Condicionantes do Desenvolvimento Econômico e Social (Editora CRV, Curitiba, 2012), Energia no Mundo e no Brasil- Energia e Mudança Climática Catastrófica no Século XXI (Editora CRV, Curitiba, 2015), As Grandes Revoluções Científicas, Econômicas e Sociais que Mudaram o Mundo (Editora CRV, Curitiba, 2016), A Invenção de um novo Brasil (Editora CRV, Curitiba, 2017), Esquerda x Direita e a sua convergência (Associação Baiana de Imprensa, Salvador, 2018, em co-autoria), Como inventar o futuro para mudar o mundo (Editora CRV, Curitiba, 2019), A humanidade ameaçada e as estratégias para sua sobrevivência (Editora Dialética, São Paulo, 2021), A escalada da ciência e da tecnologia ao longo da história e sua contribuição ao progresso e à sobrevivência da humanidade (Editora CRV, Curitiba, 2022), de capítulo do livro Flood Handbook (CRC Press, Boca Raton, Florida, United States, 2022), How to protect human beings from threats to their existence and avoid the extinction of humanity (Generis Publishing, Europe, Republic of Moldova, Chișinău, 2023) e A revolução da educação necessária ao Brasil na era contemporânea (Editora CRV, Curitiba, 2023).